domingo, 2 de novembro de 2014

Fotografia Portuguesa - Vende-se, Augusto Brázio






“Meus senhores,
A partir deste momento, a vossa ausência é a nossa felicidade.
Obrigado”

Palavras do Sr Gentil, empregado do Ferro de Engomar II, café e restaurante onde passei muito tempo da minha adolescência, em São Domingos de Benfica.

A fotografia do Ferro de Engomar foi a primeira que vimos na visita à exposição de Augusto Brázio, Vende-se, no Museu do Neo Realismo, em Vila Franca de Xira, guiados pelo curador, Sérgio B. Gomes.

Vende-se é um trabalho extenso, iniciado em 2011 e concluído nesta exposição e no livro com o mesmo nome, editado pela Ghost. É um levantamento de lojas fechadas em vários pontos do país. Com a mesma máquina, com a mesma lente, com a mesma atitude de confronto com a sua própria situação de escassez de emprego, Augusto Brázio deambula pelas ruas, encosta a lente aos vidros das montras, tantas vezes sujos, tantas vezes longe, já, do aprumo normal de um estabelecimento de comércio, e regista o que está.

“Sinto-me a ir ao osso. Sinto-me a fotografar com mais raiva”[1]




O trabalho é seco e despudorado. As lojas sucedem-se. Sérgio B. Gomes, na introdução que escreve ao catálogo da exposição, traça um contexto de ausência e abandono, situa politicamente este trabalho num texto forte de sensibilidade e solidariedade para com a perda que estas imagens também retratam. Pouco mais haverá a dizer sobre isso.

A mim, chama-me agora à atenção o contexto de confronto com um espaço de vivência que foi o nosso, não para pensar no que perdemos, mas para pensar na transformação que ocorreu.

Este texto, que aqui escrevo no blogue, podia estar numa revista. Podia estar a ser vendido numa banca, podia estar alguém a lê-lo num fim de tarde, no Ferro de Engomar II, com uma cerveja e tremoços, servidos pelo Senhor Gentil.




No entanto, o leitor está em casa a lê-lo, ou talvez até já nem esteja em casa. Há formas novas de ler na rua ou nos cafés que o podem trazer para a rua outra vez. Pode estar num jardim público e, no mesmo aparelho em que lê este blogue, pode mandar vir uma pizza para o almoço ou para o jantar e aproveitar para pedir que lhe entreguem as compras da semana em casa.

As Casas de jogo também fecharam. Deram lugar aos video jogos com qualidade gráfica cada vez maior, deram lugar a encontros em casa de amigos para torneios deste ou daquele desporto virtual, deram lugar a torneios online, até, onde se pode jogar com gente que não se conhece de parte alguma.

A internet talvez ocupe o tempo de socialização nos cafés ou as idas à livraria, à mercearia ou mesmo à loja de roupa. Podemos encomendar qualquer coisa de qualquer lado, parece.
As lojas do comércio pomposo da Baixa deram lugar aos franchises, tanto na Baixa como nos grandes centros comerciais da periferia.




Vende-se esconde tudo isto. As imagens põem em evidência o que se perdeu, é verdade, mas também a enorme transformação. Indagamos para onde foi o comércio e, para além da perda destas referências, surgem as novas. Ficamos entre dois caminhos.

O “ir ao osso” deste trabalho, parece-me, reflecte também esse vai-e-vem entre o choque da crise, a troika, a perda que tudo isso causou a muita gente, talvez à maioria destas pessoas cujos vestígios dos sonhos encontramos aqui ao abandono e, “a metáfora da senhora decadente”, como refere Brázio na entrevista ao curador, logo a abrir. A entrevista abre com uma referência ao livro: “gosto muito que não tenha capa, que esteja no osso. É um pormenor que está muito ligado com o conteúdo das fotografias, com estas lojas fechadas, que estão também no osso.” 

Transcrevo um pouco da continuação:

Sérgio B Gomes: Estão despidas.

Augusto Brázio: Já não têm gorduras.

SG: Nem músculo.

AB: Não têm músculos, não têm quase nada. Este desmaquilhar é muito forte. Muitas 
destas lojas forma como que desmaquilhadas, mas ficaram esborratadas.

SG: Parece-me uma metáfora muito apropriada para este trabalho – uma mulher que se sentia bonita e aperaltada com maquilhagem e que agora surge desmaquilhada.

AB: Pode também usar-se a metáfora da senhora decadente.

O vai-e-vem desta entrevista está todo aqui neste pequeno trecho. É o vai-e-vem de todo o trabalho: o facto de não conseguirmos instalar-nos num contexto sem sermos forçados a olhar para o outro – de não conseguirmos pensar na perda sem pensar na transformação, profunda, nos hábitos de consumo e de usufruto do comércio nas cidades. Usando, talvez abusando um pouco dos termos da entrevista, o vai-e-vem entre a gordura e o músculo; entre um tempo que resistiu a uma ultrapassagem até à evidência da crise e o músculo das novas formas que entretanto surgiram e surgem.




Retenho o comentário inicial de Sérgio Gomes, que, falando da curadoria do trabalho, refere a sua tentativa de não separar por tipologias. Desta forma, podemos ver a riqueza e inteligência de uma recolha que, confrontando o autor com a sua falta de trabalho, também, o obriga, a ele e a nós, a ver o que mudou, pela riqueza da amostra.

Esta exposição está patente até 16 de Novembro no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. Sérgio B. Gomes, apresenta o trabalho aqui, de onde tirei, também, as imagens que aqui apresento.

A visita guiada que nos fez e que contou com a presença do autor, foi organizada pelo Atelier de Lisboa, Escola de Fotografia e Centro de Artes Visuais.


[1] Augusto Brázio, em entrevista a Sérgio Gomes, no Catálogo da exposição no museu do Neo Realismo. Todas as citações se referem a este catálogo. 

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