O que é ser original, afinal? O que é que se deixa no
caminho? Que consciência temos nós dessa escolha? (E será uma escolha, se não
temos consciência dela?)
Em "A Bolha Invisível", esta questão começou a
tomar forma. O desafio era construir uma instalação fotográfica em cabines
telefónicas, tomando como referência A Dimensão Oculta, de Edward T. Hall, e os
diferentes níveis de distância a que os humanos podem estar uns dos outros.
Diz-nos Hall que há quatro níveis de distância no ser humano, a íntima, a
pessoal, a social e a pública. o desafio da exposição era pegar na cabine e
trabalhar essa noção de distância num espaço que, de certa forma, as mistura
todas. A cabine telefónica é distante porque não nos põe face a face com a
pessoa com quem falamos, mas pode ser tão íntima como a pessoa e a conversa.
Qual a relação que estabelecemos connosco? Que distância
medeia entre a nossa existência e a nossa imagem de nós? Aquele constante
matraquear de cenas que passámos, de leituras de cenas que passámos, de
projecções, de desejos, de cenas que achamos serem desejos mas são mais como
miragens, de cenas que são miragens mas que desejamos como nenhuma carne... que
relação temos nós connosco? Sendo mais específico, e trazendo mais da
questão ao seu questionar, Como nos
damos connosco dentro de cada nível de distância? Seremos íntimos de nós mesmos?
Capazes de baixar completamente a guarda perante os nosso próprios impulsos
quando ninguém mais está a ver-nos?
Com o estudo das disciplinas de educação somática, a questão
ganhou uma outra forma: Qual a linguagem para cada um falar a si mesmo?
Neste livro, Hall fala das distâncias e estas são sempre
colocadas em relação ao outro. É sempre através do outro que definimos o nosso
espaço pessoal. Isto tem o seu quê de prisão emocional, não é, pois, pensando
nisso, chegamos à conclusão de que apenas no outro conseguimos que a linguagem
nos reflicta. O que acontece no outro de tão mágico assim que não possa
encontrar controlo de nós em nós?
Porque é que todas as questões de proximidade se dão a um
nível de domínio e não a um nível de resposta? Quer dizer, a determinada
distância, porque é que deixamos de ter influência sobre o próximo e não
deixamos de ter de responder à presença deste em nós? Ou seja, a cada nível
diferente de distância, uma série de características surgem, como a presença do
olfacto, o distorcer da visão ou o contacto da pele e dos músculos dos
interlocutores. O que faz que não tenhamos menção alguma ao espaço do sentir?
Assim, a apresentação do sentir é já dada com um grau de abstracção. Um pouco
como se falássemos connosco sempre através de uma cabine. A tal cabine a que
chamámos A Bolha Invisível.
Voltamos À questão do espelho de Feldenkrais, que vimos
anteriormente. Como é que podemos definir um Eu auto-centrado a partir de um
momento em que a construção do Eu é feita, ou em resposta a um estímulo ou como
estímulo que procura uma resposta? Como é que nos organizamos antes da pergunta
e enquanto resposta sem esse nível de abstracção se tornar uma constante no
nosso pensamento e, portanto, na nossa acção? Como é que a nossa acção, perdão,
como é que conseguimos falar connosco sem ser na segunda pessoa?
Se toda a noção de controlo só é possível sobre o outro,
mesmo quando esse outro somos nós, então, somos os nossos próprios cãezinhos,
mais obedientes uns do que os outros, certo, mas só isso. uns mais mandões,
outros mandados, uns ladrando onde outros se encolhem, uns correndo atrás da
cauda, outros da trela.
Toda esta noção das distâncias é-nos apresentada por Hall. Apresenta-nos
quatro distâncias, como já vimos, a Íntima, a Pessoal, a Social e a Pública,
sendo cada uma delas dividida num modo próximo e num modo afastado, e
determinada por uma distância física concreta: contacto e de 15 a 45 cms para a
distância íntima; 45 a 75 cms e 75 a 125 cms para a distância pessoal; 1,20 a
2,10 m para a distância social no modo próximo e 2,10 a 3,60 no modo longínquo;
3,60 a 7,50 na distância pública em modo próximo e 7,50 ou maior no modo
afastado.
Toda a análise posterior convida a uma noção de
territorialidade muito próxima da de outros mamíferos - cujo estudo
comparativo, o livro também apresenta - e muito afastada da suposta
"cultura", como elemento vazio onde as manifestações do homem
acontecem. aliás, os modos culturais, definidos como valores de consumo -
adereços e linguagem - são preteridos em função de questões que lhes são anteriores,
como postura, modulação de voz, temperatura corporal, suor, dilatação das
pupilas, etc... tudo questões pré-verbais; de algum, modo, pré-racionais.
Toda esta questão das relações de distância pressupõe um
outro em relação ao qual essa distância se estabelece, e a análise é da relação
do Eu com o Outro. Sempre.
Na distância Pública, certas noções de relação social são
colocadas, como na descrição feita das distâncias das personalidades oficiais:
"A distância de 9 metros é a que impõem automaticamente as personalidades
oficiais importantes.", ou no caso dos actores, onde Hall nos diz que
"Os actores, por exemplo, sabem muito bem que, a partir dos 10 metros, a
subtileza dos cambiantes de sentido dados pela voz normal escapa e se perde,
talvez como os pormenores da expressão e dos gestos. Portanto, precisam, não só
de levantar a voz, mas de exagerar e acentuar o conjunto do seu
comportamento." Ao conjunto de alterações, afrouxamento do ritmo da
elocução, melhor articulação das palavras, gestos e posturas a garantir a
comunicação não verbal, chama de "estilo «gelado»", definição tomada
de Martin Joos: "«Estilo próprio dos indivíduos destinados a manterem-se
estranhos.»"
Com a massificação da imagem técnica - tomo o termo de
empréstimo a Vilém Flusser, no seu Ensaio sobre a fotografia: "imagem
produzida por aparelho" - a noção de figura pública enquanto exemplo de
imagem entra no nosso imaginário. Inevitavelmente, o foco da construção da
Auto-imagem passa para o outro. Massifica-se a presença, a omnipresença do
outro enquanto elemento constitutivo da nossa auto-imagem. A pouco e pouco, o
que acontece é o Je est un autre, como escreveu Rimbaud. Um Eu que é um Outro.
E o génio na frase. Dizer Je suis un autre não nos traria para esta questão. É
no emprego do verbo que nos surge a questão da Bolha Invisível: Eu É um Outro.
Usando a terminologia de Hall para determinar a que distância nos colocamos da
nossa auto-imagem, percebemos, pelo emprego da terceira pessoa, que chegámos à
esfera pública. A nossa auto-imagem deixa de ser íntima; deixa de ser pessoal;
deixa de ser social, até, e torna-se pública. Uma relação de poder pela
distância - aqui, em oposição à proximidade do íntimo e do pessoal - surge na
relação de cada um consigo mesmo. assim, construímos uma auto-imagem estranha a
nós mesmos; um eu estranho ao seu ser.
A ideia de um espaço de relação não mediada consigo mesmo
desvanece-se. A intensidade e a frequência dos estímulos nervosos que nos
chegam da propaganda e da publicidade não nos deixam esse espaço, já. Não é só
o facto de existirmos rodeados de imagens, é de o seu poder de estímulo,
através dos constantes desenvolvimentos tecnológicos, ser de tal ordem que,
mesmo quando não estamos submetidos a elas, guardamo-las na memória. Mesmo
quando não há estímulo, continuamos a responder, qual cão de Pavlov.
Desaparece o silêncio interior que caracteriza o ser.
Desaparece o vazio, como espaço onde tudo pode reflectir-se mas onde nada
resta, no fim; uma mente quieta. É típico da esfera pública não ter esse
silêncio. A esfera pública é o espaço de representação por excelência, onde
tudo é feito em função do seu efeito em terceiros. Ao partir para a auto imagem
com uma construção enfatuada pela noção de espaço público, o que acontece aos
outros espaços, verdadeiramente, da relação com o outro? Que tipo de intimidade
conseguimos com alguém quando não chegamos directamente, sequer, à nossa
própria imagem?
A originalidade. Se "Je est un autre", se a nossa
construção de nós é ditada na terceira pessoa, a ideia de nos reportarmos a nós
mesmos como origem fica cada vez mais longe. Ficamos eternamente presos numa
espécie de pescadinha de rabo na boca algo frustrante: Procurar em tudo o que
já vimos algo que ainda não tenhamos visto. Será que isto nos leva a mais do
que a um entrar cada vez mais numa espiral de identificação pelo outro? De uma
espécie de ditadura da 3ºa pessoa no discurso auto-imaginativo?
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