De algum modo, parece que Evans deixa
os romancistas para se dedicar à poesia. A uma expressão mais
espontânea do todo a cada instante do que à construção aturada de
uma realidade linear.
Walker Evans - Penny picture displays, Alabama
Talvez mais até, do que opor verso e
prosa, devamos pensar numa distinção mais incisiva, a da criação
de uma linguagem oposta a um escrever o léxico dos outros. Procurar
chegar àquela língua estrangeira que Deleuze diz existir em todos
os grandes escritores, ao fazer gaguejar a língua.
Walker Evans - Circus Poster, Alabama,
Criar um documento pode ser visto dessa
forma. A pouco e pouco, vamos deixando de parte os truques e as
manhas e vamo-nos tornando sinceros e abertos para com o nosso
próprio pensamento. As imagens começam a surgir para o pensamento
assim como o pensamento surge a partir das imagens que, cada vez mais
o refletem. E aí, começa a diferenciação em relação a uma
linguagem usual. Esse documento surgirá tão novo como a relação
do documentarista com o mundo que abre.
Há uma relação que se estende no
tempo. Berenice Abbot, outro nome grande do documentarismo, diz-nos
que fotografar uma cidade é o trabalho de uma vida e não pode ser
captado numa só foto. Esta relação com o tempo e, por isso,
consigo mesmo, vai acrescentando densidade de leitura por oposição
aos truques “estéticos”. A imagem é despida de truques para que
a leitura seja crua. Interessa criar uma relação com o que lá
está; criar uma abordagem “neutra” para permitir uma leitura
“neutra”.
Coloco entre parêntesis o “estético”
e o “neutro” porque, sabemo-lo hoje, não existe neutralidade, e
as imagens vêm sempre informadas pela atenção e intenção do
autor e porque, como qualquer imagem ou documento construído,
também estas são estéticas. Estética, lembremo-lo, apela a uma
construção dos sentidos, a uma sensorialidade, e não ao bonitinho
da esteticista. Olhando para trás, hoje em dia, percebemos isso ao
falar da estética da propaganda e ao ver como estas imagens,
pungentes, cruas e honestas na aparência, permitiram a criação de
uma ética e de uma moral de trabalho e de crescimento através do
consumo.
Walker Evans - Roadside stand near Birmingham, Alabama
Assim, o que nos fica é uma estética
que permite a leitura mais abrangente do que se quer mostrar. A
suposta “neutralidade” constitui a forma mais simples de deixar
falar os elementos que se escolheu focar; diz-nos que não importa,
dentro dos elementos focados, tentar estetizar, mas que, por assim
dizer, quanto menos interpretação dermos aos factos, mais espaço
de interpretação damos ao “leitor”.
Walker Evans - Minstrel poster, Alabama, 1936
|
“Leitor”. Mais uma palavra entre parêntesis pois estas imagens podem ser lidas literalmente. A cara, o tom de pele, a expressão dos olhos, o lábio inferior mordido, as roupas gastas mas cuidadas, o cabelo apertado, tudo isto descreve uma vida exigente, exposta. Allie Mae Burroughs não tem vida fácil. Percebemo-lo neste retrato. Ao ver o marido, ou a casa da família, percebemo-lo ainda mais. Todas as imagens de Alabama são isso mesmo, um retrato cru de uma época difícil. Os materiais simples, pouco adornados, a rudeza das pessoas, tudo aponta, não para a dignidade do trabalho que a Farm Security Administration quer passar, mas para uma realidade mais dura e áspera, mais austera.
Walker Evans - Allie Mae Burroughs |
Walker Evans - Home of Cotton Sharecropper Floyd Burroughs, Alabama |
Evans é um dos rostos do estilo
documental em fotografia definido pela agência de Roy E. Stryker.
Seria de esperar que fosse a face da propaganda, também, que
promovesse o seu propósito. No entanto, ironicamente, Evans virá a
ser despedido por Stryker em 1937, por criar registos puros, não
ajudando à propaganda para a mudança social que a FSA queria
implementar através destes trabalhos.
William Carlos Williams termina assim o seu Sermon with a Camera
(http://www.ericmarth.com/newtwine/sermonwithacamera.pdf ), uma crítica ao livro American Photographs, de Evans:
The pictures are for the most part mild, but in spite of
this, though always exquisitely clear in reasoning and in visual quality, they pack a
wicked punch. There's nothing oppressively "photographic" here, it isn't a long nose
poking into dirty corners for propaganda and for scandal, there are no trick shots, the
composition isn't a particular feature - but the pictures talk to us. And they say plenty.
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