Estou ainda a olhar para a reprodução da reprodução de um cachimbo que Magritte nos apresenta no seu quadro A traição das imagens. Desde que o postei que fiquei com a impressão de que esta representação não é representativa do quadro, uma vez que não lhe traduz as cores originais.
Imagino
Magritte na Caverna de Platão. Transporta um cachimbo na mão e, ao
olhá-lo na parede no fundo da caverna, decide pintá-lo.
Acabada
a obra, dá-se conta de que o cachimbo que pintou não dá para
fumar.
Volta
a olhar para a parede e para o quadro e deduz que há uma falha na
representação. Afinal, as imagens não traem! Escreve no quadro
Isto não é um cachimbo e senta-se a fumar, cansado com a exigência
da questão... Como pintar um cachimbo fumável?
Ao
olhar outra vez para o quadro, nota como o fumo o envolve. Parece que
o cachimbo pintado deita fumo, também. Procura o cachimbo na parede
da caverna e , não só não há fumo, também, na parede, como o
próprio cachimbo não está lá.
Nota
que a última vez que o viu lá foi antes de o pintar.
As
imagens não traem, pensa novamente; o cachimbo é o seu pensamento.
Decide
abandonar a caverna, mas antes, pendura um quadro na parede:
A
traição das imagens.
Esta
questão da representação da representação, de ter uma fotografia
de uma pintura de um objecto coloca-nos numa nova posição. Já não
estamos sentados na caverna a ver as sombras das imagens que tomamos
por verdade. Já sabemos que as sombras não são verdade porque
agora as vemos na fotografia. Aliás, vemo-nos a ver as sombras, já:
Estamos sentados a ver-nos sentados a ser iludidos pela sombra de
imagens projectadas na parede de uma gruta. A imagem mostra-nos lá,
claramente, sentados a consumir a ilusão. A comentar o facto de já
o sabermos.
Susan
Sontag começa o seu livro, Ensaios sobre a fotografia, com um
capítulo intitulado Na caverna de Platão. Diz-nos que há uma
questão de escala, da quantidade de imagens fotográficas que foi
acumulada em contraponto com a quantidade de qualquer outro tipo de
imagem. Diz-nos, também, que é uma forma de ver, como McLuhan - o
meio é a mensagem - e que, segundo ela, mais
significativamente, nos "dá a sensação de que a nossa cabeça
pode conter todo o mundo - como uma antologia de imagens."i
Não
é só que outras formas de registo e representação do mundo não
nos permitissem esta colecção, apesar da escala em que a fotografia
o permite ser imensamente maior, é também a forma como estas
imagens são registadas, o aspecto mecânico desta reprodução e a
consequente reprodutibilidade, tão discutida por Benjamin, mas
também o facto da verosimilhança, da incrível verosimilhança com
aquilo que o nosso olhar regista. "O que se escreve sobre uma
pessoa ou um acontecimento é uma mera interpretação, à semelhança
de depoimentos visuais artesanais como a pintura e o desenho. As
imagens fotográficas não parecem tanto ser depoimentos sobre o
mundo como seus fragmentos, miniaturas da realidade que todos podem
fazer ou adquirir."ii
Fragmentos,
miniaturas da realidade, com um ar de tal forma realista que podemos
apontar e nomear-nos lá. A nossa cabeça pode conter o mundo que
contém a nossa cabeça.
As
imagens da fotografia, como o cachimbo de Magritte - e a sua
reprodução fotográfica - fornecem-nos imagens do nosso pensamento.
Nesse sentido, talvez possamos chamar-lhes "fragmentos da
realidade" mas, ainda aí, subsiste o problema, como em tudo o
que envolve o tempo, a duração: as imagens, do nosso pensamento
como da realidade além pensamento, se é que se pode falar de uma
imagem da realidade que não esteja no nosso pensamento, surgem num
encadeamento contínuo que este modo de representação distorce.
Poderemos chamar realidade a algo que é apenas um seu registo
fragmentário? Conseguiremos pintar, ou neste caso, fotografar um
cachimbo fumável?
iSusan
Sontag, Ensaios sobre a Fotografia – Publicações D Quixote
iiSusan
Sontag, idem
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