segunda-feira, 11 de março de 2013

Sombras 03



Estou ainda a olhar para a reprodução da reprodução de um cachimbo que Magritte nos apresenta no seu quadro A traição das imagens. Desde que o postei que fiquei com a impressão de que esta representação não é representativa do quadro, uma vez que não lhe traduz as cores originais.


Imagino Magritte na Caverna de Platão. Transporta um cachimbo na mão e, ao olhá-lo na parede no fundo da caverna, decide pintá-lo.
Acabada a obra, dá-se conta de que o cachimbo que pintou não dá para fumar.
Volta a olhar para a parede e para o quadro e deduz que há uma falha na representação. Afinal, as imagens não traem! Escreve no quadro Isto não é um cachimbo e senta-se a fumar, cansado com a exigência da questão... Como pintar um cachimbo fumável?

Ao olhar outra vez para o quadro, nota como o fumo o envolve. Parece que o cachimbo pintado deita fumo, também. Procura o cachimbo na parede da caverna e , não só não há fumo, também, na parede, como o próprio cachimbo não está lá.
Nota que a última vez que o viu lá foi antes de o pintar. 
As imagens não traem, pensa novamente; o cachimbo é o seu pensamento.
Decide abandonar a caverna, mas antes, pendura um quadro na parede:
A traição das imagens.


Esta questão da representação da representação, de ter uma fotografia de uma pintura de um objecto coloca-nos numa nova posição. Já não estamos sentados na caverna a ver as sombras das imagens que tomamos por verdade. Já sabemos que as sombras não são verdade porque agora as vemos na fotografia. Aliás, vemo-nos a ver as sombras, já: Estamos sentados a ver-nos sentados a ser iludidos pela sombra de imagens projectadas na parede de uma gruta. A imagem mostra-nos lá, claramente, sentados a consumir a ilusão. A comentar o facto de já o sabermos.

Susan Sontag começa o seu livro, Ensaios sobre a fotografia, com um capítulo intitulado Na caverna de Platão. Diz-nos que há uma questão de escala, da quantidade de imagens fotográficas que foi acumulada em contraponto com a quantidade de qualquer outro tipo de imagem. Diz-nos, também, que é uma forma de ver, como McLuhan - o meio é a  mensagem - e que, segundo ela, mais significativamente, nos "dá a sensação de que a nossa cabeça pode conter todo o mundo - como uma antologia de imagens."i 
Não é só que outras formas de registo e representação do mundo não nos permitissem esta colecção, apesar da escala em que a fotografia o permite ser imensamente maior, é também a forma como estas imagens são registadas, o aspecto mecânico desta reprodução e a consequente reprodutibilidade, tão discutida por Benjamin, mas também o facto da verosimilhança, da incrível verosimilhança com aquilo que o nosso olhar regista. "O que se escreve sobre uma pessoa ou um acontecimento é uma mera interpretação, à semelhança de depoimentos visuais artesanais como a pintura e o desenho. As imagens fotográficas não parecem tanto ser depoimentos sobre o mundo como seus fragmentos, miniaturas da realidade que todos podem fazer ou adquirir."ii
Fragmentos, miniaturas da realidade, com um ar de tal forma realista que podemos apontar e nomear-nos lá. A nossa cabeça pode conter o mundo que contém a nossa cabeça.
As imagens da fotografia, como o cachimbo de Magritte - e a sua reprodução fotográfica - fornecem-nos imagens do nosso pensamento. Nesse sentido, talvez possamos chamar-lhes "fragmentos da realidade" mas, ainda aí, subsiste o problema, como em tudo o que envolve o tempo, a duração: as imagens, do nosso pensamento como da realidade além pensamento, se é que se pode falar de uma imagem da realidade que não esteja no nosso pensamento, surgem num encadeamento contínuo que este modo de representação distorce. Poderemos chamar realidade a algo que é apenas um seu registo fragmentário? Conseguiremos pintar, ou neste caso, fotografar um cachimbo fumável? 




iSusan Sontag, Ensaios sobre a Fotografia – Publicações D Quixote
iiSusan Sontag, idem

Sem comentários:

Enviar um comentário