sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Ensaios Sobre a Contaminação III

Comecei a ler um livro, Palácio de Cristal – para uma teoria filosófica da globalização, de Peter Sloterdijk.

"Em Júlio Verne, o viajante do mundo renunciou ao seu ofício de documentalista; tornou-se puro passageiro. Apresenta-se como um cliente dos serviços de transporte, que paga para que a sua viagem não se torne uma experiência de que haja que dar conta posteriormente. Dar a volta ao mundo, para ele, é uma prestação desportiva, não uma lição filosófica e nem sequer o elemento de um programa de educação. É por esse motivo que Phileas Fogg pode ficar tão calado como um desportista.
No que diz respeito ao aspecto técnico da volta ao mundo em oitenta dias, Júlio Verne, no horizonte do ano de 1874, não era nenhum visionário: tendo em conta os meios de transporte escolhidos, o comboio e o paquete, principais motores da «revolução» dos transportes em meados e finais do século XIX, a viagem do seu herói correspondia exactamente ao nível atingido na época na arte de transportar ingleses apáticos do ponto A para o ponto B e vice-versa."

A ideia de que a modernidade, começando por transformar pequenos pontos de terra protegidos por uma abóbada celeste num enorme globo visto do exterior chamou-me a atenção. É a sedução das imagens. Continuei a ler.
Vistos de fora, entretanto, os locais deixam de ser centros de sentir e perceber o mundo e passam a ser pontos de partida e de chegada. A abertura de rotas definidas, de coordenadas, cria a noção de século XX do tráfico, que necessita de rotas claras de ida e volta, e de uma certa expectativa de repetibilidade de modo a que a viagem “não se torne uma experiência de que haja que dar conta posteriormente”.
De certo modo, passamos de uma noção de certo modo mágica de nos sentirmos e percebermos como o centro do mundo para uma visão – algo que já pressupõe uma certa exterioridade – de fora; do espaço connosco lá. Daí à ideia de uma superfície algo irregular com pontos de referência…
Esta repetibilidade da expectativa é quase o oposto da repetição no exemplo dos ensaios que o maestro José Robert dá. Implica que abdiquemos da experiência da viagem para darmos conta dos pontos de partida e chegada, apenas, e que, por isso mesmo, essa viagem se processe da forma o menos notada possível. Não consigo deixar de pensar nas semelhanças entre estas viagens e as viagens de mercadoria e informação que consumimos todos os dias.

Sloterdijk fala no “hermético turista das viagens «tudo incluído» que apanha correspondências em todos os lados, sem em nenhum deles ver nada mais do que já viu nos prospectos” e eu fico a pensar se não estaremos, nas viagens da nossa rotina diária não se tornaram vítimas, também, desta repetibilidade e na beleza, na música que renasce no voltar a prestar-lhes atenção.

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