Comecei a ler um livro, Palácio de Cristal – para uma teoria
filosófica da globalização, de Peter Sloterdijk.
"Em Júlio Verne, o viajante do mundo renunciou ao seu ofício
de documentalista; tornou-se puro passageiro. Apresenta-se como um cliente dos
serviços de transporte, que paga para que a sua viagem não se torne uma experiência de que haja que dar conta
posteriormente. Dar a volta ao mundo, para ele, é uma prestação desportiva, não
uma lição filosófica e nem sequer o elemento de um programa de educação. É por
esse motivo que Phileas Fogg pode ficar tão calado como um desportista.
No que diz respeito ao aspecto técnico da volta ao mundo em
oitenta dias, Júlio Verne, no horizonte do ano de 1874, não era nenhum
visionário: tendo em conta os meios de transporte escolhidos, o comboio e o
paquete, principais motores da «revolução» dos transportes em meados e finais
do século XIX, a viagem do seu herói correspondia exactamente ao nível atingido
na época na arte de transportar ingleses apáticos do ponto A para o ponto B e
vice-versa."
A ideia de que a modernidade, começando por transformar
pequenos pontos de terra protegidos por uma abóbada celeste num enorme globo
visto do exterior chamou-me a atenção. É a sedução das imagens. Continuei a
ler.
Vistos de fora, entretanto, os locais deixam de ser centros de
sentir e perceber o mundo e passam a ser pontos de partida e de chegada. A abertura
de rotas definidas, de coordenadas, cria a noção de século XX do tráfico, que
necessita de rotas claras de ida e volta, e de uma certa expectativa de
repetibilidade de modo a que a viagem “não
se torne uma experiência de que haja que dar conta posteriormente”.
De certo modo, passamos de uma noção de certo modo mágica de
nos sentirmos e percebermos como o centro do mundo para uma visão – algo que já
pressupõe uma certa exterioridade – de fora; do espaço connosco lá. Daí à ideia
de uma superfície algo irregular com pontos de referência…
Esta repetibilidade da expectativa é quase o oposto da
repetição no exemplo dos ensaios que o maestro José Robert dá. Implica que abdiquemos
da experiência da viagem para darmos conta dos pontos de partida e chegada,
apenas, e que, por isso mesmo, essa viagem se processe da forma o menos notada
possível. Não consigo deixar de pensar nas semelhanças entre estas viagens e as
viagens de mercadoria e informação que consumimos todos os dias.
Sloterdijk fala no “hermético turista das viagens «tudo
incluído» que apanha correspondências em todos os lados, sem em nenhum deles
ver nada mais do que já viu nos prospectos” e eu fico a pensar se não
estaremos, nas viagens da nossa rotina diária não se tornaram vítimas, também,
desta repetibilidade e na beleza, na música que renasce no voltar a
prestar-lhes atenção.
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