quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Ensaios Sobre a Contaminação VIII

No outro dia, perguntaram-me porque é que não há pessoas nas minhas fotografias. A pergunta é sempre algo curiosa porque me parece, que, de certa forma, só há pessoas nas fotografias. Como disse o Gonçalo Valverde, Ensaios Sobre a Contaminação é um estudo sobre a contaminação do humano pela natureza e da natureza pelo humano. Apesar de não haver pessoas nas fotografias, as fotografias centram o seu foco no comportamento e nos hábitos das pessoas que atravessam estes espaços diariamente. Eu incluído.
Volto a lembrar-me dos romances de Milan Kundera. Tenho impressão de que nunca li uma descrição física de um personagem num livro dele, e no entanto, parece que os consigo ver na acção descrita. o contexto é de tal forma claro, a descrição dos processos do que é existir nesses contextos é de tal forma detalhada que as pessoas se tornam óbvias. Sempre me fascinou isso nos seus romances. Sempre me fascinou o desafio que isso colocava à imaginação. Os personagens eram sempre cheios de vida própria, de acção espontânea. Cresciam na minha leitura como se fossem pessoas normais exactamente porque aquilo que me cativava neles era uma impressão dos seus hábitos. Não era a cor do cabelo, mas a forma nervosa de lhe mexer quando na companhia do sexo oposto. A descrição nunca era estática.
Um retrato fotográfico de uma pessoa, pelo contrário, sempre me pareceu tudo o que a pessoa não é: não se mexe, não respira, não responde. É certo que, nalguns retratos de algumas pessoas, parecemos poder ver algo mais que a imagem estática arranjada para dar uma ideia concreta da pessoa, mas eu nunca senti vontade nem capacidade de os fazer.
Os espaços onde as pessoas desenvolvem os seus hábitos, no entanto, fascinam-me. A primeira mostra deste trabalho, o facto de ter tantas imagens, supostamente, sobre tanta coisa, atestam esse fascínio e essa incapacidade para o retrato-síntese.
As pessoas são processos, no fundo. Qualquer pequena alteração no hábito de uma pessoa provoca uma alteração no seu processo. Roni Horn trabalha tão bem essa noção do que é um processo e de como uma noção fixa de identidade não pode nunca dizer-nos!
Os espaços que as pessoas ocupam são processos, também eles. E de uma delicadeza sublime. O fascínio que me liga ao subúrbio é o fascínio que me liga ao indefinido, ao que ainda não tem síntese. Ensaios sobre a Contaminação é também isso, a relação da definição-síntese com o espaço indefinido. O trabalho é composto de vários trabalhos, de vários elementos surgidos do deambular e do observar repetido no tempo. Ideias-síntese? Claro. Ainda assim, usando o comentário do professor António Júlio Duarte, fica sempre mais de fora quando se tenta fechar este trabalho.
O desafio está lá, no entanto...


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