Mostrar mensagens com a etiqueta Sombras. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Sombras. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 22 de março de 2013

Sombras 08

É surpreendente, a forma como, de repente - ou talvez esta impressão de repentismo já pertença ao enunciado da ilusão - conseguimos transferir a nossa auto-imagem para algo que é exterior a nós mesmos; como conseguimos olhar para um objecto material e identificar algo que é nosso, que é, por assim dizer, o nosso darmo-nos, com esse objecto exterior e material.
Retomo a ideia do espelho, de Feldenkrais. Ontem, numa conversa, falava da ideia de originalidade, e da forma como, não poucas vezes, procuramos na história das ideias uma ideia que não tenha ainda sido apresentada, que seja original nesse sentido de não ter existido ainda como objecto.
O que é ser original? Alguém passa uma vida inteira procurando, no compêndio das ideias feitas, uma que seja original, que nunca tenha sido vista. No final da vida, sentencia: Depois de uma vida inteira a procurar uma ideia que não tivesse ainda sido feita, noto que tudo o que encontrei feito estava feito. Não tendo encontrado nada que, feito, ainda estivesse por fazer e fosse, assim original, declaro ser impossível, nos dias de hoje, ser-se original.
Isto lembra-me a ideia do espelho de Feldenkrais, como já disse. E lembra-me a introdução que o próprio escreve para The Potent Self, como o título Love Thyself As Thy Neighbor -
http://books.google.pt/books?id=LXihqvZs-q8C&pg=PR37&lpg=PR37&dq=love+thyself+as+thy+neighbour+feldenkrais&source=bl&ots=pQp7rUWw3N&sig=eGJxGWHM3I3wIBlCXFcru-eud4U&hl=en&sa=X&ei=9o3IUMvYNtOYhQe-x4CQAg&ved=0CEwQ6AEwBA#v=onepage&q=love%20thyself%20as%20thy%20neighbour%20feldenkrais&f=false -
onde inverte a ordem do ditado. Diz-nos ele, resumidamente, que qualquer princípio, qualquer valor moral, independentemente do seu valor em abstracto, perde toda a validade quando obedecido compulsivamente. Quando nos obrigamos a agir ou a fazer a partir de uma imagem exterior a nós mesmos, estamos a ser tiranos para connosco. Love Thy Neighbor as Thy Self é, então, um convite a essa tirania na primeira pessoa, ao desligá-la de si por princípio, ao convidar, não a uma ação baseada na perceção de si, na auto-responsabilidade, mas numa imagem que é exterior ao princípio de auto-organização. Chegamos a uma contradição inultrapassável. Tanto mais que, aquilo que seria necessário para ultrapassar esta questão é exactamente esse princípio de auto organização que o próprio ditado exclui.

O que é ser original? É original aquilo que reflecte, ou que remete para uma origem. É o que nos diz o dicionário, pelo menos. Se, por outro lado trazemos o termo para designar algo de inovador, se dizemos que algum trabalho é original quando é novo, quando não se reporta a nada, então, temos um contrasenso; temos um momento de contradição que dificilmente pode ser ultrapassado sem deixar cair alguma coisa no caminho.


Qual é a origem, no fundo?

segunda-feira, 11 de março de 2013

Sombras 03



Estou ainda a olhar para a reprodução da reprodução de um cachimbo que Magritte nos apresenta no seu quadro A traição das imagens. Desde que o postei que fiquei com a impressão de que esta representação não é representativa do quadro, uma vez que não lhe traduz as cores originais.


Imagino Magritte na Caverna de Platão. Transporta um cachimbo na mão e, ao olhá-lo na parede no fundo da caverna, decide pintá-lo.
Acabada a obra, dá-se conta de que o cachimbo que pintou não dá para fumar.
Volta a olhar para a parede e para o quadro e deduz que há uma falha na representação. Afinal, as imagens não traem! Escreve no quadro Isto não é um cachimbo e senta-se a fumar, cansado com a exigência da questão... Como pintar um cachimbo fumável?

Ao olhar outra vez para o quadro, nota como o fumo o envolve. Parece que o cachimbo pintado deita fumo, também. Procura o cachimbo na parede da caverna e , não só não há fumo, também, na parede, como o próprio cachimbo não está lá.
Nota que a última vez que o viu lá foi antes de o pintar. 
As imagens não traem, pensa novamente; o cachimbo é o seu pensamento.
Decide abandonar a caverna, mas antes, pendura um quadro na parede:
A traição das imagens.


Esta questão da representação da representação, de ter uma fotografia de uma pintura de um objecto coloca-nos numa nova posição. Já não estamos sentados na caverna a ver as sombras das imagens que tomamos por verdade. Já sabemos que as sombras não são verdade porque agora as vemos na fotografia. Aliás, vemo-nos a ver as sombras, já: Estamos sentados a ver-nos sentados a ser iludidos pela sombra de imagens projectadas na parede de uma gruta. A imagem mostra-nos lá, claramente, sentados a consumir a ilusão. A comentar o facto de já o sabermos.

Susan Sontag começa o seu livro, Ensaios sobre a fotografia, com um capítulo intitulado Na caverna de Platão. Diz-nos que há uma questão de escala, da quantidade de imagens fotográficas que foi acumulada em contraponto com a quantidade de qualquer outro tipo de imagem. Diz-nos, também, que é uma forma de ver, como McLuhan - o meio é a  mensagem - e que, segundo ela, mais significativamente, nos "dá a sensação de que a nossa cabeça pode conter todo o mundo - como uma antologia de imagens."i 
Não é só que outras formas de registo e representação do mundo não nos permitissem esta colecção, apesar da escala em que a fotografia o permite ser imensamente maior, é também a forma como estas imagens são registadas, o aspecto mecânico desta reprodução e a consequente reprodutibilidade, tão discutida por Benjamin, mas também o facto da verosimilhança, da incrível verosimilhança com aquilo que o nosso olhar regista. "O que se escreve sobre uma pessoa ou um acontecimento é uma mera interpretação, à semelhança de depoimentos visuais artesanais como a pintura e o desenho. As imagens fotográficas não parecem tanto ser depoimentos sobre o mundo como seus fragmentos, miniaturas da realidade que todos podem fazer ou adquirir."ii
Fragmentos, miniaturas da realidade, com um ar de tal forma realista que podemos apontar e nomear-nos lá. A nossa cabeça pode conter o mundo que contém a nossa cabeça.
As imagens da fotografia, como o cachimbo de Magritte - e a sua reprodução fotográfica - fornecem-nos imagens do nosso pensamento. Nesse sentido, talvez possamos chamar-lhes "fragmentos da realidade" mas, ainda aí, subsiste o problema, como em tudo o que envolve o tempo, a duração: as imagens, do nosso pensamento como da realidade além pensamento, se é que se pode falar de uma imagem da realidade que não esteja no nosso pensamento, surgem num encadeamento contínuo que este modo de representação distorce. Poderemos chamar realidade a algo que é apenas um seu registo fragmentário? Conseguiremos pintar, ou neste caso, fotografar um cachimbo fumável? 




iSusan Sontag, Ensaios sobre a Fotografia – Publicações D Quixote
iiSusan Sontag, idem

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Sombras 02


McLuhan, falando sobre a fotografia, diz-nos «Um dos traços característicos da fotografia é a sua possibilidade de isolar momentos do tempo». Transcrevo a frase, não porque tal seja necessário à ideia que aqui se veicula e que se tornou um dos slogans do próprio meio, mas pelo que nos diz: isolar momentos do tempo. Não no tempo, mas do tempo. Transcrevo-o da tradução, na edição da Relógio d'Água, Compreender os Meios de Comunicação, extensões do homem, de 2008, na tradução de José Miguel Silva. No original, aparece-nos como moments in time, e não moments from time, ou seja, momentos no tempo. No entanto, este lapso traz à superfície uma questão importante. Talvez, mais do que um erro, este pormenor da tradução faça justiça ao pensamento que aqui apresento: as imagens são retiradas dessa circulação do tempo. Não congelam o tempo, abstraem do tempo: aquele instante que guardámos não vai voltar.
A questão que coloquei começa aqui a ganhar relevo. Será que uma imagem retirada do fluxo do tempo pode ser considerada real? Chamo a atenção para esta retirada, que se dá a vários níveis. Não é só o facto de ser uma abstracção em relação ao fluxo do tempo, pois, isso, todas as reproduções anteriores o eram. Muito mais importante, aqui, é a abstracção em relação ao gesto, à estaticidade “real” da imagem, por um lado, e à suposta não intervenção humana – digo suposta pois é mais uma crença que um facto, como veremos. A acrescentar a isto, a noção popular de que a fotografia é o real, e não um símbolo ou uma representação.
A questão importa, sobretudo, quando consideramos a nossa tentativa de adequação a uma imagem estática, abstraída, ao mesmo tempo, do fluxo do tempo e da acção – dos nossos gestos – quando a vemos como destino a almejar. Estamos a estabelecer, como modelo a seguir, uma “realidade” abstraída de nós mesmos e, por isso, inalcançável.

(Uma reprodução de) Magritte - La Trahison des Images

Lembro-me de uma explicação de filosofia, a primeira que tive, acho. A professora mostrou-me uma reprodução de La Trahison de Images e perguntou
- O que é isto?
Eu respondi que era um cahimbo, primeiro. Quando me disse que estava enganado, respondi, meio ironicamente, que era um quadro.
- Um quadro de quê? Pergunto ela outra vez.
- De um cachimbo?
- Lê lá o que está em baixo.
- Ceci n'est pas une pipe.
- Sabes o que quer dizer? Isto não é um cahimbo.
- Sim, mas é um cachimbo, não? Está lá pintado!
- Sim, mas olha lá bem.

A conversa continuou até eu perceber que a pintura representava um cachimbo, não era o próprio cachimbo. Que a inscrição em baixo servia para o tornar óbvio, no fundo, apesar do aparente paradoxo que representava ter um cachimbo pintado – insisto no erro de propósito, já – e uma inscrição que diz Isto não é um cachimbo.

Duane Michals - Visit With Magritte

La trahison des images. Magritte lá o sabia. A sua obra é, em parte, uma paródia inteligente através destes paradoxos. Não só a questão da representação/realidade, como das camadas de representação, e da forma como podemos, numa mesma camada, acrescentar sentidos tão contraditórios entre si que o todo se torna, literalmente, nonsense, pelo menos, em relação ao que a imagem do sentido permite. A ideia de um sobrerrealismo como uma objecção à fixidez da "verdade" nas imagens.

The medium is the message, outra vez. É apenas quando o Isto é se torna menos óbvio que o percebemos, realmente. Porque também pode não ser. E isto inaugura toda uma querela que é da própria história da fotografia, a discussão sobre o real ou sobre a verdade. Entre o Isto é, o Isto não é, o Isto pode ou Isto não pode ser, vamos avançando sempre em direcção a uma ideia de imagem que que nos é dada pela aparente realidade da imagem fotográfica e que inclui a nossa imagem nela. Um pouco como um pai a trabalhar longe de casa que passasse anos a ver o filho só em fotografias e comentasse, ao primeiro encontro: Mas ele mexe-se!

The medium is the massage. Ou como diz o ditado, o hábito faz o monge. E a ideia de uma representabilidade da realidade sem intervenção do representante ganha espaço e relevo no nosso imaginário. Teremos agarrado, finalmente, a realidade? Temos finalmente alguma coisa para a qual possamos apontar e dizer, inequivocamente Isto é Isto! Podemos dormir descansados.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Sombras 01


O grande gozo desta cena toda é tudo parecer real. Sim. Fotografamos por uma série de limitações que o próprio meio impõe e quando olhamos para a imagem, parece mesmo o que lá estava. Isto diz-nos, antes de mais, da enorme capacidade que temos para inventar. Pura e simplesmente. Inventamos um aparelho que permite construir imagens da realidade desde que nos conformemos à forma como este nos permite ver. Saímos à rua com as imagens que são produto desse aparelho e dizemos Isto é... A ideia de algo fazer prova de realidade torna-se plausível. Olhamos para lá e está lá. É mais plana, é certo – mesmo com a chegada do 3D – mas está lá. Sem intervenção humana, dizem os entendidos. É espantoso. Temos imagens de tudo! E se alguns as usam, essencialmente, para continuar a duvidar e a procurar, outros, talvez como sempre, vêem apenas a caixa mágica que produz realidade.
De repente, somos todos apenas mais um produto desse mesmo aparelho. The medium is the message, diz McLuhan. De repente, desatamos a olhar para as fotografias onde aparecemos e a dizer Olha eu! Este sou eu! Achamos que está tudo bem, e se nos dizem que aquele ali não somos nós, ninguém duvida, claro. Claro que toda a gente sabe que aquilo é só uma imagem.


Joseph Nicéphore Niépce

Dizem que esta é a primeira imagem fotográfica que existe. Foi feita por Joseph Nicéphore Niépce, um inventor francês, na segunda metade do século XIX. Ao olhar para ela aqui reproduzida, não consigo perceber o que é defeito original da imagem e o que é defeito da digitalização. De qualquer modo, o grau de realismo é ainda bastante inocente. Mas aqui estava o primeiro registo fiel da rua tantos de tal na data de tal e tantos. Uma imagem "real" da "realidade".
Real” e “Realidade”. Dois termos que retenho e me fazem pensar. Provavelmente, terão lá estado sempre e, como tal, quando a fotografia chegou, achou-se que permitiria olhar “realmente” o “real”. Idealmente, seria assim. No entanto, que real era esse antes e depois da chegada da fotografia?

Podemos argumentar que a imagem já lá estava, perfeitamente reproduzida, apesar de ao contrário, nas paredes da câmara escura, e que a fotografia não veio acrescentar grande coisa. No entanto, havia algo nas imagens que ainda as ligava a um outro tempo: não ficavam. Eram passageiras. E o seu registo dependia ainda da “imperfeição” do gesto humano. O facto de aqui usar o termo imperfeição, e de o usar entre parênteses, já diz muito do que aqui se passa. De repente, damos por nós a criar uma imagem nossa de perfeita realidade que não depende da realidade da nossa existência gestual e temporal.

Perde-se o gesto na construção da imagem, perde-se a necessidade de acção humana para a execução de um retrato, e perde-se o gesto do retratado no execução do retratista, também. A auto-imagem devém algo de estático. Conseguimos um mecanismo de fixação da nossa imagem que é mecânico e químico, perfeito, no seu aspecto de realidade factual.


Outro aspecto interessante neste Isto é: o que aparece resulta sempre do que já não está. A fotografia, o objecto final, resulta, quando muito, num Isto Foi. Como a própria ideia, tão cara à popularização deste meio, de que fixa instantes no tempo; de que congela o tempo.

Ficamos com uma imagem real da realidade tirada do fluxo do tempo. A pouco e pouco, vamos ordenando a nossa noção de realidade num arranjo cada vez mais visual, cada vez mais imagético, e vamos construindo o nosso fluxo a partir de, através de e – talvez o mais importante, aqui – para essas imagens estáticas.
Resta uma questão, agora: Será que uma imagem retirada do fluxo do tempo pode ainda ser considerada “Real”?

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Sombras 09


O que é ser original, afinal? O que é que se deixa no caminho? Que consciência temos nós dessa escolha? (E será uma escolha, se não temos consciência dela?)
Em "A Bolha Invisível", esta questão começou a tomar forma. O desafio era construir uma instalação fotográfica em cabines telefónicas, tomando como referência A Dimensão Oculta, de Edward T. Hall, e os diferentes níveis de distância a que os humanos podem estar uns dos outros. Diz-nos Hall que há quatro níveis de distância no ser humano, a íntima, a pessoal, a social e a pública. o desafio da exposição era pegar na cabine e trabalhar essa noção de distância num espaço que, de certa forma, as mistura todas. A cabine telefónica é distante porque não nos põe face a face com a pessoa com quem falamos, mas pode ser tão íntima como a pessoa e a conversa.
Qual a relação que estabelecemos connosco? Que distância medeia entre a nossa existência e a nossa imagem de nós? Aquele constante matraquear de cenas que passámos, de leituras de cenas que passámos, de projecções, de desejos, de cenas que achamos serem desejos mas são mais como miragens, de cenas que são miragens mas que desejamos como nenhuma carne... que relação temos nós connosco? Sendo mais específico, e trazendo mais da questão  ao seu questionar, Como nos damos connosco dentro de cada nível de distância? Seremos íntimos de nós mesmos? Capazes de baixar completamente a guarda perante os nosso próprios impulsos quando ninguém mais está a ver-nos?
Com o estudo das disciplinas de educação somática, a questão ganhou uma outra forma: Qual a linguagem para cada um falar a si mesmo?
Neste livro, Hall fala das distâncias e estas são sempre colocadas em relação ao outro. É sempre através do outro que definimos o nosso espaço pessoal. Isto tem o seu quê de prisão emocional, não é, pois, pensando nisso, chegamos à conclusão de que apenas no outro conseguimos que a linguagem nos reflicta. O que acontece no outro de tão mágico assim que não possa encontrar controlo de nós em nós?
Porque é que todas as questões de proximidade se dão a um nível de domínio e não a um nível de resposta? Quer dizer, a determinada distância, porque é que deixamos de ter influência sobre o próximo e não deixamos de ter de responder à presença deste em nós? Ou seja, a cada nível diferente de distância, uma série de características surgem, como a presença do olfacto, o distorcer da visão ou o contacto da pele e dos músculos dos interlocutores. O que faz que não tenhamos menção alguma ao espaço do sentir? Assim, a apresentação do sentir é já dada com um grau de abstracção. Um pouco como se falássemos connosco sempre através de uma cabine. A tal cabine a que chamámos A Bolha Invisível.
Voltamos À questão do espelho de Feldenkrais, que vimos anteriormente. Como é que podemos definir um Eu auto-centrado a partir de um momento em que a construção do Eu é feita, ou em resposta a um estímulo ou como estímulo que procura uma resposta? Como é que nos organizamos antes da pergunta e enquanto resposta sem esse nível de abstracção se tornar uma constante no nosso pensamento e, portanto, na nossa acção? Como é que a nossa acção, perdão, como é que conseguimos falar connosco sem ser na segunda pessoa?
Se toda a noção de controlo só é possível sobre o outro, mesmo quando esse outro somos nós, então, somos os nossos próprios cãezinhos, mais obedientes uns do que os outros, certo, mas só isso. uns mais mandões, outros mandados, uns ladrando onde outros se encolhem, uns correndo atrás da cauda, outros da trela.
Toda esta noção das distâncias é-nos apresentada por Hall. Apresenta-nos quatro distâncias, como já vimos, a Íntima, a Pessoal, a Social e a Pública, sendo cada uma delas dividida num modo próximo e num modo afastado, e determinada por uma distância física concreta: contacto e de 15 a 45 cms para a distância íntima; 45 a 75 cms e 75 a 125 cms para a distância pessoal; 1,20 a 2,10 m para a distância social no modo próximo e 2,10 a 3,60 no modo longínquo; 3,60 a 7,50 na distância pública em modo próximo e 7,50 ou maior no modo afastado.
Toda a análise posterior convida a uma noção de territorialidade muito próxima da de outros mamíferos - cujo estudo comparativo, o livro também apresenta - e muito afastada da suposta "cultura", como elemento vazio onde as manifestações do homem acontecem. aliás, os modos culturais, definidos como valores de consumo - adereços e linguagem - são preteridos em função de questões que lhes são anteriores, como postura, modulação de voz, temperatura corporal, suor, dilatação das pupilas, etc... tudo questões pré-verbais; de algum, modo, pré-racionais.
Toda esta questão das relações de distância pressupõe um outro em relação ao qual essa distância se estabelece, e a análise é da relação do Eu  com o Outro. Sempre.
Na distância Pública, certas noções de relação social são colocadas, como na descrição feita das distâncias das personalidades oficiais: "A distância de 9 metros é a que impõem automaticamente as personalidades oficiais importantes.", ou no caso dos actores, onde Hall nos diz que "Os actores, por exemplo, sabem muito bem que, a partir dos 10 metros, a subtileza dos cambiantes de sentido dados pela voz normal escapa e se perde, talvez como os pormenores da expressão e dos gestos. Portanto, precisam, não só de levantar a voz, mas de exagerar e acentuar o conjunto do seu comportamento." Ao conjunto de alterações, afrouxamento do ritmo da elocução, melhor articulação das palavras, gestos e posturas a garantir a comunicação não verbal, chama de "estilo «gelado»", definição tomada de Martin Joos: "«Estilo próprio dos indivíduos destinados a manterem-se estranhos.»"
Com a massificação da imagem técnica - tomo o termo de empréstimo a Vilém Flusser, no seu Ensaio sobre a fotografia: "imagem produzida por aparelho" - a noção de figura pública enquanto exemplo de imagem entra no nosso imaginário. Inevitavelmente, o foco da construção da Auto-imagem passa para o outro. Massifica-se a presença, a omnipresença do outro enquanto elemento constitutivo da nossa auto-imagem. A pouco e pouco, o que acontece é o Je est un autre, como escreveu Rimbaud. Um Eu que é um Outro. E o génio na frase. Dizer Je suis un autre não nos traria para esta questão. É no emprego do verbo que nos surge a questão da Bolha Invisível: Eu É um Outro. Usando a terminologia de Hall para determinar a que distância nos colocamos da nossa auto-imagem, percebemos, pelo emprego da terceira pessoa, que chegámos à esfera pública. A nossa auto-imagem deixa de ser íntima; deixa de ser pessoal; deixa de ser social, até, e torna-se pública. Uma relação de poder pela distância - aqui, em oposição à proximidade do íntimo e do pessoal - surge na relação de cada um consigo mesmo. assim, construímos uma auto-imagem estranha a nós mesmos; um eu estranho ao seu ser.
A ideia de um espaço de relação não mediada consigo mesmo desvanece-se. A intensidade e a frequência dos estímulos nervosos que nos chegam da propaganda e da publicidade não nos deixam esse espaço, já. Não é só o facto de existirmos rodeados de imagens, é de o seu poder de estímulo, através dos constantes desenvolvimentos tecnológicos, ser de tal ordem que, mesmo quando não estamos submetidos a elas, guardamo-las na memória. Mesmo quando não há estímulo, continuamos a responder, qual cão de Pavlov.
Desaparece o silêncio interior que caracteriza o ser. Desaparece o vazio, como espaço onde tudo pode reflectir-se mas onde nada resta, no fim; uma mente quieta. É típico da esfera pública não ter esse silêncio. A esfera pública é o espaço de representação por excelência, onde tudo é feito em função do seu efeito em terceiros. Ao partir para a auto imagem com uma construção enfatuada pela noção de espaço público, o que acontece aos outros espaços, verdadeiramente, da relação com o outro? Que tipo de intimidade conseguimos com alguém quando não chegamos directamente, sequer, à nossa própria imagem?
A originalidade. Se "Je est un autre", se a nossa construção de nós é ditada na terceira pessoa, a ideia de nos reportarmos a nós mesmos como origem fica cada vez mais longe. Ficamos eternamente presos numa espécie de pescadinha de rabo na boca algo frustrante: Procurar em tudo o que já vimos algo que ainda não tenhamos visto. Será que isto nos leva a mais do que a um entrar cada vez mais numa espiral de identificação pelo outro? De uma espécie de ditadura da 3ºa pessoa no discurso auto-imaginativo?

sábado, 15 de dezembro de 2012

Sombras 08



É surpreendente, a forma como, de repente - ou talvez esta impressão de repentismo já pertença ao enunciado da ilusão - conseguimos transferir a nossa auto-imagem para algo que é exterior a nós mesmos; como conseguimos olhar para um objecto material e identificar algo que é nosso, que é, por assim dizer, o nosso darmo-nos, com esse objecto exterior e material.
Retomo a ideia do espelho, de Feldenkrais. Ontem, numa conversa, falava da ideia de originalidade, e da forma como, não poucas vezes, procuramos na história das ideias uma ideia que não tenha ainda sido apresentada, que seja original nesse sentido de não ter existido ainda como objecto.
O que é ser original? Alguém passa uma vida inteira procurando, no compêndio das ideias feitas, uma que seja original, que nunca tenha sido vista. No final da vida, sentencia: Depois de uma vida inteira a procurar uma ideia que não tivesse ainda sido feita, noto que tudo o que encontrei feito estava feito. Não tendo encontrado nada que, feito, ainda estivesse por fazer e fosse, assim original, declaro ser impossível, nos dias de hoje, ser-se original.
Isto lembra-me a ideia do espelho de Feldenkrais, como já disse. E lembra-me a introdução que o próprio escreve para The Potent Self, como o título Love Thyself As Thy Neighbor -
http://books.google.pt/books?id=LXihqvZs-q8C&pg=PR37&lpg=PR37&dq=love+thyself+as+thy+neighbour+feldenkrais&source=bl&ots=pQp7rUWw3N&sig=eGJxGWHM3I3wIBlCXFcru-eud4U&hl=en&sa=X&ei=9o3IUMvYNtOYhQe-x4CQAg&ved=0CEwQ6AEwBA#v=onepage&q=love%20thyself%20as%20thy%20neighbour%20feldenkrais&f=false -
onde inverte a ordem do ditado. Diz-nos ele, resumidamente, que qualquer princípio, qualquer valor moral, independentemente do seu valor em abstracto, perde toda a validade quando obedecido compulsivamente. Quando nos obrigamos a agir ou a fazer a partir de uma imagem exterior a nós mesmos, estamos a ser tiranos para connosco. Love Thy Neighbor as Thy Self é, então, um convite a essa tirania na primeira pessoa, ao desligá-la de si por princípio, ao convidar, não a uma ação baseada na perceção de si, na auto-responsabilidade, mas numa imagem que é exterior ao princípio de auto-organização. Chegamos a uma contradição inultrapassável. Tanto mais que, aquilo que seria necessário para ultrapassar esta questão é exactamente esse princípio de auto organização que o próprio ditado exclui.

O que é ser original? É original aquilo que reflecte, ou que remete para uma origem. É o que nos diz o dicionário, pelo menos. Se, por outro lado, trazemos o termo para designar algo de inovador, se dizemos que algum trabalho é original quando é novo, quando não se reporta a nada, então, temos um contrasenso; temos um momento de contradição que dificilmente pode ser ultrapassado sem deixar cair alguma coisa no caminho.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Sombras 07

 

Os poetas todos a sair da caverna e o outro a pensar que os expulsou... nunca se chega a perceber se a sombra é o que sobra do homem iludido com a sua própria projecção nas coisas, como algo que sobra a uma espécie de homem pós poesia, ou se é ainda um grito do poema, algures escondido, latente, uma sombra que não seja uma imagem do que é mas um sinal do que projecta. Um poema latente, uma última hipótese de escolha. Talvez o gajo que na alegoria chegou à luz pudesse esclarecer-nos, mas é-lhe difícil descrever algo que ainda ninguém viu.
A verdade é que aprendemos a olhar para a projecção da própria imagem e de a por antes de nós perante o espelho. Procuramos a sombra da sombra. Faz-me lembrar o exemplo de Feldenkrais, que propunha às pessoas que, frente ao espelho, estendessem o braço direito e tocassem o mesmo braço reflectido nesse espelho. O grau de alienação da pessoa em relação a si mesma tornava-se evidente quando a pessoa tocava o seu braço esquerdo reflectido no espelho, como se se tratasse de outra pessoa que não ela própria reflectida. 
É incrível perceber até que ponto conseguimos construir a nossa imagem a partir de fora, chegando a um tal ponto que, mesmo sabendo que estamos a mexer o braço direito para tocar nesse mesmo braço reflectido no espelho, somo capazes de ver o reflexo do nosso braço direito como o nosso braço que se move na direcção da nossa imagem que ali está à frente como um outro corpo, e por isso, toca no braço parado, do nosso lado esquerdo. 
Como é que podemos pensar a nossa imagem como algo que nos é exterior, que nos é imposto como uma regra? 
Feldenkrais diz-nos que as pessoas que tocam com o seu braço direito no seu braço esquerdo reflectido no espelho são as que estão mais distantes de si mesmas enquanto seres vivos, capazes de sentir e de pensar e decidir com base na sua propriocepção, na sua percepção de si mesmos. 
E eu fico a pensar em todo o conformismo, em todo o burocracismo contra-natura que esta distância ao próprio ser constrói. Fico a pensar no ridículo que é alguém tentar compor a imagem fazendo arranjos no próprio espelho.
E um ditador, olhando por cima, por trás, por dentro, por tudo, já, replicando-se no pensamento conformista dos seus súbditos... julgando ser dele, a imagem do espelho que os outros perseguem e arranjam com esmero.
Já dizia Álvaro de Campos, "Há entre mim e os meus passos uma divergência instintiva. Há entre quem sou e estou uma diferença de verbo que corresponde à realidade."
Dou-me conta que temos esta língua rara que nos permite colocar frente a frente ser e estar; que nos permite  estar a olhar para ser como para uma sombra; que nos permite perceber que estamos ali e que sermos, que Sermos ou não aquela imagem reflectida, depende de lá estarmos. Que o contrário seria a sombra tentando ver-se sempre onde não há luz.
Mas depois não percebemos que ser só está onde nós estamos, que é como uma sombra; que, deixando de estar ali, o ser ali desaparece. O poema sabe que contém em si a sua própria descrição. Organiza-se dentro do seu próprio ritmo, da sua própria intenção. Varela e Maturana sabem disto ao falar de Auto Poiesis como o princípio auto organizador da vida. Se mostram que isto é válido até na mais simples célula, como não seria no caso maravilhosamente complexo que é o nosso sistema nervoso?
Seremos nós apenas um estádio de nós mesmos, passando o intervalo entre os dias de jogo ofuscados, ainda, pelas luzes?