quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Sombras 07

 

Os poetas todos a sair da caverna e o outro a pensar que os expulsou... nunca se chega a perceber se a sombra é o que sobra do homem iludido com a sua própria projecção nas coisas, como algo que sobra a uma espécie de homem pós poesia, ou se é ainda um grito do poema, algures escondido, latente, uma sombra que não seja uma imagem do que é mas um sinal do que projecta. Um poema latente, uma última hipótese de escolha. Talvez o gajo que na alegoria chegou à luz pudesse esclarecer-nos, mas é-lhe difícil descrever algo que ainda ninguém viu.
A verdade é que aprendemos a olhar para a projecção da própria imagem e de a por antes de nós perante o espelho. Procuramos a sombra da sombra. Faz-me lembrar o exemplo de Feldenkrais, que propunha às pessoas que, frente ao espelho, estendessem o braço direito e tocassem o mesmo braço reflectido nesse espelho. O grau de alienação da pessoa em relação a si mesma tornava-se evidente quando a pessoa tocava o seu braço esquerdo reflectido no espelho, como se se tratasse de outra pessoa que não ela própria reflectida. 
É incrível perceber até que ponto conseguimos construir a nossa imagem a partir de fora, chegando a um tal ponto que, mesmo sabendo que estamos a mexer o braço direito para tocar nesse mesmo braço reflectido no espelho, somo capazes de ver o reflexo do nosso braço direito como o nosso braço que se move na direcção da nossa imagem que ali está à frente como um outro corpo, e por isso, toca no braço parado, do nosso lado esquerdo. 
Como é que podemos pensar a nossa imagem como algo que nos é exterior, que nos é imposto como uma regra? 
Feldenkrais diz-nos que as pessoas que tocam com o seu braço direito no seu braço esquerdo reflectido no espelho são as que estão mais distantes de si mesmas enquanto seres vivos, capazes de sentir e de pensar e decidir com base na sua propriocepção, na sua percepção de si mesmos. 
E eu fico a pensar em todo o conformismo, em todo o burocracismo contra-natura que esta distância ao próprio ser constrói. Fico a pensar no ridículo que é alguém tentar compor a imagem fazendo arranjos no próprio espelho.
E um ditador, olhando por cima, por trás, por dentro, por tudo, já, replicando-se no pensamento conformista dos seus súbditos... julgando ser dele, a imagem do espelho que os outros perseguem e arranjam com esmero.
Já dizia Álvaro de Campos, "Há entre mim e os meus passos uma divergência instintiva. Há entre quem sou e estou uma diferença de verbo que corresponde à realidade."
Dou-me conta que temos esta língua rara que nos permite colocar frente a frente ser e estar; que nos permite  estar a olhar para ser como para uma sombra; que nos permite perceber que estamos ali e que sermos, que Sermos ou não aquela imagem reflectida, depende de lá estarmos. Que o contrário seria a sombra tentando ver-se sempre onde não há luz.
Mas depois não percebemos que ser só está onde nós estamos, que é como uma sombra; que, deixando de estar ali, o ser ali desaparece. O poema sabe que contém em si a sua própria descrição. Organiza-se dentro do seu próprio ritmo, da sua própria intenção. Varela e Maturana sabem disto ao falar de Auto Poiesis como o princípio auto organizador da vida. Se mostram que isto é válido até na mais simples célula, como não seria no caso maravilhosamente complexo que é o nosso sistema nervoso?
Seremos nós apenas um estádio de nós mesmos, passando o intervalo entre os dias de jogo ofuscados, ainda, pelas luzes?



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