Lembro-me de há uns tempos, ver um programa de uma empresa de camionagem que estava com problemas com a sua seguradora devido ao aumento do número de acidentes com os seus camiões. Consultaram um especialista qualquer que, após analisar e avaliar o serviço, disse que o mal deles era sono. Sono e falta de tempo livre. Exatamente, isso mesmo: sono. Não é que precisassem de trabalhar mais, nem de aumentar impostos, nem de arranjar máquinas que permitissem aumentar a produção, nem de camiões melhores com segurança por radar transcendental. Precisavam de parar e dormir, manter os ritmos circadianos, e de ter tempo definido para estar com a família, para descansar, para relaxar. O resultado: menos acidentes. Mais alegria no trabalho, melhor rendimento. Mais por menos, no fundo.
É interessante pensar que, quando estamos em stresse, a
nossa margem de resposta reduz-se significativamente. Por muito que, na praia,
pensemos que vamos fazer isto e aquilo e o outro, quando chega a hora, a reação
é sempre a mesma que não queríamos. A empresa de camionagem, vendo os seus
condutores fatigados a conseguir cada vez menos cumprir os horários
estabelecidos e, assim, a falhar prazos e entregas e, pior, a ter acidentes por
tentar ir depressa demais dentro da falta de atenção, para resolver o problema,
decide apertar ainda mais as condições e aumentar as horas de trabalho.
Resultado? Pois.
O ritmo circadiano. Parece que há qualquer coisa assim, é
verdade; que nos movemos como um relógio, não pelos segundos contados, mas pelo
facto de nos organizarmos em torno de um ciclo diário. Circa Diem. Cerca de um
dia. Parece que é importante para a nossa homeostasia e tudo; que dita a
regularidade de quase todas as nossas funções, da digestão à temperatura, à
regulação de humor, à regeneração celular, aos ciclos de sono e vigília… em
suma, dependemos de uma certa circularidade padrão. Aquela malta do yin yang
também acertou aqui.
Estou a escrever isto e a lembrar-me de um texto que o
Roberto Reveilleau me enviou há uns tempos, de um rabino brasileiro, sobre o
aproveitamento do tempo. Sobre a ideia de se aproveitar o tempo, de nos
explorarmos, no fundo, e da forma como isso aniquilou a ideia de tempo livre,
de tempo para dar tempo ao tempo, como dizia o outro.
Passo o texto aqui, agradecendo ao Roberto e ao Rabino:
OS DOMINGOS PRECISAM DE FERIADOS
Toda
sexta-feira à noite começa o shabat para a tradição judaica. Shabat é o
conceito que propõe descanso ao final do ciclo semanal de produção, inspirado
no descanso divino, no sétimo dia da Criação.
Muito
além de uma proposta trabalhista, entendemos a pausa como fundamental para a
saúde de tudo o que é vivo. A noite é pausa, o inverno é pausa, mesmo a morte é
pausa. Onde não há pausa, a vida lentamente se extingue.
Para
um mundo no qual funcionar 24 horas por dia parece não ser suficiente, onde o
meio ambiente e a terra imploram por uma folga, onde nós mesmos não suportamos
mais a falta de tempo, descansar se torna uma necessidade do planeta.
Hoje,
o tempo de 'pausa' é preenchido por diversão e alienação. Lazer não é feito de
descanso, mas de ocupações 'para não nos ocuparmos'. A própria palavra
entretenimento indica o desejo de não parar. E a incapacidade de parar é uma
forma de depressão.
O
mundo está deprimido e a indústria do entretenimento cresce nessas condições.
Nossas cidades se parecem cada vez mais com a Disneylândia. Longas filas para
aproveitar experiências pouco interativas. Fim de dia com gosto de vazio. Um
divertido que não é nem bom nem ruim. Dia pronto para ser esquecido, não fossem
as fotos e a memória de uma expectativa frustrada que ninguém revela para não
dar o gostinho ao próximo.
Entramos
no milênio num mundo que é um grande shopping. A Internet e a televisão não
dormem. Não há mais insônia solitária; solitário é quem dorme. As bolsas do
Ocidente e do Oriente se revezam fazendo do ganhar e perder, das informações e
dos rumores, atividade incessante. A CNN inventou um tempo linear que só pode
parar no fim.
Mas
as paradas estão por toda a caminhada e por todo o processo. Sem acostamento, a
vida parece fluir mais rápida e eficiente, mas ao custo fóbico de uma paisagem
que passa. O futuro é tão rápido que se confunde com o presente. As montanhas
estão com olheiras, os rios precisam de um bom banho, as cidades de uma
cochilada, o mar de umas férias, o domingo de um feriado...
Nossos
namorados querem 'ficar', trocando o 'ser' pelo 'estar'. Saímos da escravidão
do século XIX para o leasing do século XXI - um dia seremos nossos?
Quem
tem tempo não é sério, quem não tem tempo é importante. Nunca fizemos tanto e
realizamos tão pouco. Nunca tantos fizeram tanto por tão poucos...
Parar
não é interromper. Muitas vezes continuar é que é uma interrupção.
O
dia de não trabalhar não é o dia de se distrair - literalmente, ficar
desatento. É um dia de atenção, de ser atencioso consigo e com sua vida. A
pergunta que as pessoas se fazem no descanso é 'o que vamos fazer hoje?' - já
marcada pela ansiedade. E sonhamos com uma longevidade de 120 anos, quando não
sabemos o que fazer numa tarde de Domingo.
Quem
ganha tempo, por definição, perde. Quem mata tempo, fere-se mortalmente. É este
o grande 'radical livre' que envelhece nossa alegria - o sonho de fazer do
tempo uma mercadoria.
Em
tempos de novo milênio, vamos resgatar coisas que são milenares. A pausa é que
traz a surpresa e não o que vem depois. A pausa é que dá sentido à caminhada. A
prática espiritual deste milênio será viver as pausas. Não haverá maior sábio
do que aquele que souber quando algo terminou e quando algo vai começar.
Afinal,
por que o Criador descansou? Talvez porque, mais difícil do que iniciar um
processo do nada, seja dá-lo como concluído.
Texto do Rabino Nilton Bonder,
da Congregação Judaica