quarta-feira, 28 de novembro de 2018

BaW 3


David Hockney apresenta a ideia de que o uso de engenhos ópticos - espelhos, no caso - remonta ao início da renascença e que a história da arte ocidental a partir do Renascimento é também a história da exploração desses engenhos para produzir obras de arte visuais.
Ao apontar o uso destes engenhos até Brunelleschi, aponta também ao estabelecimento do uso da perspetiva linear na construção da nossa representação do mundo. Não é, então, apenas a questão de estarmos a ver uma coisa que nos coloca numa distância ontológica em relação ao elemento representado, mas é, também, o facto de termos acesso, não à representação desse elemento, mas da sua reflexão num espelho...

domingo, 25 de novembro de 2018

BaW 2

O carro é sempre qualquer coisa que nos parte a realidade em dois. Estamos dentro de um habitáculo que nos separa do que está fora. Esta questão interessou-me. O lado ecrã do pára brisas. O horizonte está sempre ali, onde a estrada leva, mas nunca chegamos a lá chegar.
Este lado tem-me interessado muito; a paisagem e a estrada que abre para esta e perante esta. O facto de nunca chegarmos à paisagem que o carro nos abre. As Twentysix Gasoline Stations de Ed Ruscha. A route 66 percorrida de um lado para o outro e o que nos sobra, o que nos é dado a ver, não é exatamente a paisagem perante a qual a estrada nos coloca, mas a condicionante de ter de andar ali para a poder ver. Somos colocados no carro. Aquelas bombas são a evidência de que o andar na estrada não é apenas uma imensa liberdade e o horizonte aberto à nossa frente, mas é este habitáculo onde seguimos e este ter de parar para alimentar o carro e este ter de estar desligado de tudo aquilo a que a estrada poderia ligar.

Ed Ruscha Twentysix Gasoline Stations

Olhar para as bombas de gasolina fecha o plano aberto da paisagem e faz-nos lembrar que a cena do carro é também um condicionamento. Traz-nos de volta a uma coisa do concreto, das condições da viagem; do lado performativo do seguir no carro e do ter de manter o carro em condições, não só pela condução, mas pela atenção a tudo o que é esse universo. O carro acaba por ser um universo muito mais fechado, muito mais concreto, muito mais ligado a nós e ao nosso estar ali. À repetição, tanto ou mais do que à abertura e liberdade da open road. Numa entrevista, Ruscha chama a estas bombas "necessary stopovers". Margaret Iversen fala de uma automaticidade e de uma fotografia performativa, pela forma como os livros são executados a partir de uma ideia pré-estabelecida; a partir de um nome já na cabeça do autor quando da conceção do livro, que lhe dá origem. Isso dá-se de tal forma que a execução em si é quase indiferente (cool), não mostrando qualquer estilo, qualquer ideia autoral. Há uma outra performatividade latente nestes trabalhos: o percurso. Pela Route 66, no caso de Ruscha, ou por qualquer outra estrada. No caso dos percursos pendulares casa-trabalho, por exemplo, encontramos esses percursos repetidos. Também, aqui, temos, não apenas o carro, mas a ideia da repetição, do automatismo, da separação entre um dentro e um fora e, agora, de tempos de espera, do constrangimento dos tempos de espera.

Miguel Rodrigues Stop


Esta questão interessou-me. Abre uma quebra no automatismo, ou um automatismo da quebra que permite que se pense a relação do estar e do chegar, da relação consigo em função da presença num espaço e num instante em relação com os objetivos dessa presença ali. A estrada, a presença na estrada, está, ao mesmo tempo, relacionada com um chegar e com esse campo aberto que vemos através do pára-brisas, uma relação com a paisagem e com a perspetiva clássica, e com um fechamento da expetativa e um foco na impossibilidade de avançar. A própria paisagem passa a ser uma limitação que se imprime no pára-brisas: já não abre para um caminho aberto, fecha na impossibilidade de avançar para ele.

sábado, 20 de maio de 2017

BaW 1


Cada vez me fascina mais esta coisa do automóvel, de poder sair por uma estrada qualquer e só seguir viagem. De poder ser eu o alimento da minha indulgência.

Lembro-me de sentir um certo aconchego nos barulhos mecânicos; de acordar com o som do secador de cabelo da minha mãe e ficar na cama, satisfeito, a ouvir, ou de adormecer ao som da ventoinha no verão. Não sei porquê, há algo naquilo, naquela monotonia, que me acalma o pensamento. Como se fosse um mantra, um Om mecânico qualquer.

Conduzir nestas estradas vai dar ao mesmo. Há aquele mínimo de atenção necessário para a condução e aquele mínimo de gestos, que vai dando para voltar ao corpo, mais o ar a entrar pela janela aberta e o som do espaço em volta a entrar pelo som do carro e a construir, com o espaço que passa. Qualquer coisa como uma contemplação.

Lembro-me da estrada desde sempre. Lembro-me de dormir no embalo do som do carro nas viagens longas e da paisagem a passar pelas canções que se cantavam.

Lembro-me da equação da matemática existencial do Kundera em A Lentidão, de como a velocidade a que nos deslocamos é directamente proporcional à nossa vontade de esquecimento e abrando ainda mais.

Como algo feito para rasgar pode fazer do tempo da passagem um farol


domingo, 30 de outubro de 2016

17 Studies II

Este convite feito ao Lucas Dietrich faz todo o sentido neste projecto, na ideia de um processo aberto e partilhado.

Sempre me intrigou esta coisa de, apesar de tudo no mundo surgir da interacção dos seus elementos, o trabalho artístico ser tantas vezes mostrado como algo fechado.
Assim, disse ao Lucas que queria algo que envolvesse as pessoas no processo, que abrisse o processo criativo às pessoas e não o mostrasse como um resultado fechado. Queria partilhar o que é o processo e não o seu resultado.


Acabámos por chegar a este cartaz

Lucas Dietrich, Miguel Rodrigues, Cartaz 17 Studies


e a um espaço que podia ser abertamente partilhado. Algo de muito simples: um cartaz com uma imagem e um espaço em branco, a frase this would/could be some interchangeable text, escrita manualmente depois de o cartaz estar afixado e tempo. Bastante tempo.

Inicialmente, colámos os cartazes pelas ruas de Lisboa e de Berlim. Sobretudo, em zonas de passagem: paragens de metro, de comboio, de autocarro, viadutos, proximidade de centros comerciais, zonas de grande intensidade de trânsito.
Ao mesmo tempo, pedimos a pessoas que levassem estes cartazes e que os colassem, elas também, em sítios onde passassem, noutras cidades ou países.

Criámos um site, 17studies.com, onde fomos registando o processo, pedindo e gravando imagem e som dos locais dos cartazes.

Interessava esta ideia de jogar com o tempo, de perceber se teríamos mais intervenção humana ou mais deterioração, buscando inspiração no ready made malheureux o célebre presente de casamento de Duchamp para a sua irmã, na forma como este precisava do acaso, na intervenção das condições climatéricas, tanto como de um conjunto de instruções enviadas por carta à irmã,

Não saber se o cartaz sofreria alguma intervenção nem que tipo de intervenção sofreria, nem que pessoas, se algumas, executariam essa intervenção.
Não saber sequer se sobreviveria, tendo ou não tendo sofrido intervenção humana.


Miguel Rodrigues, Lucas Dietrich, 17 Studies em Lisboa (Julho, 2015)


De repente, ter todo um processo dependente apenas do acaso; estar na dependência desse acaso para ter resultados.

A imagem daquela parcela visual do meu quotidiano à qual, durante tanto tempo, prestara tão pouca atenção, era agora deixada ao mesmo acaso, sujeita à mesma improbabilidade de resposta dos transeuntes.




segunda-feira, 24 de outubro de 2016

17 Studies I

Lembro-me de, a dada altura, ter boleia da escola para casa de um amigo, o Pedro, que tinha chegado a Lisboa há pouco tempo e de, um dia, lhe ter dito que dava para ir de Sete Rios às Portas de Benfica todos os dias da semana, sem repetir o percurso.

Assim fizemos. Todos os dias o Pedro me dava boleia e todos os dias se arranjava um caminho novo para ir da escola para casa. Acho que foi a primeira vez que me passou pela cabeça a questão Porque é que fazemos todos o mesmo percurso, dia após dia?


Não vou dizer que sei a resposta, mas isso deixou-me a pensar e, ao longo dos anos, fui repetindo este exercício de não repetir percursos no meu dia a dia. Ainda hoje o faço.


Este trabalho, parecendo opor-se a esse princípio da não repetição, tende a afirmá-la. são onze fotografias da mesma planta, selecionadas a partir de uma coleção maior, que fui recolhendo ao longo de algumas semanas sempre que passava em frente a ela.


Miguel Rodrigues, 11 imagens de rotina


Estamos no oitavo andar de um prédio de habitação em Benfica, Lisboa. Há oito apartamentos neste andar, distribuídos por um corredor do qual apenas vemos o final, com os elevadores e uma janela. do lado direito, imediatamente atrás de mim, há uma porta de um desses apartamentos e outra que dá para as escadas de serviço. para trás de mim ficam também os outros cinco apartamentos e, do lado oposto do corredor, junto à porta do apartamento onde vivia nesta altura, outras escadas.

Esta planta, logo a seguir aos elevadores, começou a chamar a minha atenção. Estava sempre ali. Daquelas coisas que sabemos que ali estão e em relação às quais esse saber parece bastar. Até que um dia a fotografei e reparei que não reparava muito nela. 



Miguel Rodrigues, 11 imagens de rotina


À primeira questão, seguiu-se, então, uma outra, Como é que, repetindo todos os dias o mesmo percurso, conseguimos não reparar nas coisas com as quais nos cruzamos?




Miguel Rodrigues, 11 imagens de rotina

    

    
Miguel Rodrigues, 11 imagens de rotina

       
Esta série, 11 imagens de rotina, faz parte do trabalho publicado em raum.pt, um trabalho com curadoria de Bruno Pelletier Sequeira, que dá origem a um outro trabalho, 17 Studies, em colaboração com Lucas Dietrich, cujo resultado será exposto no próximo dia 5 de Novembro, no Arquivo 237, em Lisboa.




Miguel Rodrigues, 11 imagens de rotina




O que seriam as coisas comuns que passamos se realmente nos preocupássemos em olhá-las?
Esta foi a questão seguinte, que norteou todo o processo de trabalho que se seguiu e que deu origem ao trabalho de colaboração.



Miguel Rodrigues, 11 imagens de rotina

       


Miguel Rodrigues, 11 imagens de rotina

 Procurámos uma forma de trazer, para um ambiente físico, as possibilidades de interação que o trabalho 17 Estudos Sobre a Personalidade permitia, trazendo as pessoas, não para o centro do processo criativo mas, pela partilha dos códigos, para uma possibilidade de resposta. 


Miguel Rodrigues, 11 imagens de rotina

       


Miguel Rodrigues, 11 imagens de rotina

    


Miguel Rodrigues, 11 imagens de rotina