domingo, 25 de novembro de 2018

BaW 2

O carro é sempre qualquer coisa que nos parte a realidade em dois. Estamos dentro de um habitáculo que nos separa do que está fora. Esta questão interessou-me. O lado ecrã do pára brisas. O horizonte está sempre ali, onde a estrada leva, mas nunca chegamos a lá chegar.
Este lado tem-me interessado muito; a paisagem e a estrada que abre para esta e perante esta. O facto de nunca chegarmos à paisagem que o carro nos abre. As Twentysix Gasoline Stations de Ed Ruscha. A route 66 percorrida de um lado para o outro e o que nos sobra, o que nos é dado a ver, não é exatamente a paisagem perante a qual a estrada nos coloca, mas a condicionante de ter de andar ali para a poder ver. Somos colocados no carro. Aquelas bombas são a evidência de que o andar na estrada não é apenas uma imensa liberdade e o horizonte aberto à nossa frente, mas é este habitáculo onde seguimos e este ter de parar para alimentar o carro e este ter de estar desligado de tudo aquilo a que a estrada poderia ligar.

Ed Ruscha Twentysix Gasoline Stations

Olhar para as bombas de gasolina fecha o plano aberto da paisagem e faz-nos lembrar que a cena do carro é também um condicionamento. Traz-nos de volta a uma coisa do concreto, das condições da viagem; do lado performativo do seguir no carro e do ter de manter o carro em condições, não só pela condução, mas pela atenção a tudo o que é esse universo. O carro acaba por ser um universo muito mais fechado, muito mais concreto, muito mais ligado a nós e ao nosso estar ali. À repetição, tanto ou mais do que à abertura e liberdade da open road. Numa entrevista, Ruscha chama a estas bombas "necessary stopovers". Margaret Iversen fala de uma automaticidade e de uma fotografia performativa, pela forma como os livros são executados a partir de uma ideia pré-estabelecida; a partir de um nome já na cabeça do autor quando da conceção do livro, que lhe dá origem. Isso dá-se de tal forma que a execução em si é quase indiferente (cool), não mostrando qualquer estilo, qualquer ideia autoral. Há uma outra performatividade latente nestes trabalhos: o percurso. Pela Route 66, no caso de Ruscha, ou por qualquer outra estrada. No caso dos percursos pendulares casa-trabalho, por exemplo, encontramos esses percursos repetidos. Também, aqui, temos, não apenas o carro, mas a ideia da repetição, do automatismo, da separação entre um dentro e um fora e, agora, de tempos de espera, do constrangimento dos tempos de espera.

Miguel Rodrigues Stop


Esta questão interessou-me. Abre uma quebra no automatismo, ou um automatismo da quebra que permite que se pense a relação do estar e do chegar, da relação consigo em função da presença num espaço e num instante em relação com os objetivos dessa presença ali. A estrada, a presença na estrada, está, ao mesmo tempo, relacionada com um chegar e com esse campo aberto que vemos através do pára-brisas, uma relação com a paisagem e com a perspetiva clássica, e com um fechamento da expetativa e um foco na impossibilidade de avançar. A própria paisagem passa a ser uma limitação que se imprime no pára-brisas: já não abre para um caminho aberto, fecha na impossibilidade de avançar para ele.

Sem comentários:

Enviar um comentário