sábado, 27 de novembro de 2010

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De volta à música. À improvisação e à fluência do discurso.

Lembro-me de uma vez passar um bom bocado em conversa com um praticante de Aikido sobre as virtudes da cambalhota e do treino repetido. Que nunca é bem uma repetição, dizia-me ele. A conversa passou mais ou menos em tom de descrição do número de variações que pudemos arranjar naqueles instantes: chuva, sol, a subir ou a descer, de dia ou de noite, mais roupa, menos roupa, estrada, relva, passeio... e em cada vez, era essencial, não só a consciência do movimento a executar, mas também a adaptação do corpo ao contexto onde este seria executado...

E depois, estou em casa da Ana Kotowicz e o Augusto anda louco para comer batatas fritas, embora se tenha engasgado com a primeira que comeu. Ao tentar meter a mão no pacote para tirar batatas, prendo-lhe a mão, como se fosse o pacote. Ele olha para a cena, olha para mim, eu sorrio, ele sorri... e volta a meter a mão. A cena repete-se. E repete-se. E repete-se. E quando eu não continuo o jogo ele olha com ar de Não vais parar agora!...
Diz-se que as crianças repetem gestos pelo gozo da repetição e eu fico a pensar no puto e a pensar O que será que se passa? Porque é que uma coisa que é visivelmente uma seca para qualquer adulto é uma brincadeira tão apelativa para uma criança? Aquilo para ele nunca é igual. Está tão atento a todos os pormenores daquela operação que nada lhe escapa; o seu equilíbrio, se a mão ficou mais dentro ou mais fora do pacote, a velocidade com que eu reagi ou sorri depois de ele conseguir tirar a mão.

É como a cena de aprender a andar. Durante uns tempos, tudo aquilo é um espectáculo. Tudo o que fazemos tem repercussões enormes no gesto seguinte. Até que aprendemos a prever os gestos com os músculos e a repeti-los cada vez mais iguais. Até que deixamos de prestar atenção.

Um dia, num ensaio do Coro da Universidade de Lisboa, o Maestro José Robert pára de ensaiar, e com o seu ar de puto que acabou de fazer uma grande descoberta, comenta connosco que os franceses chamam repetição ao que nós chamamos ensaio. Repete-se como o Augusto, com aquela cena da atenção que afasta o tédio e nos faz crescer nas coisas. Repete-se sem repetir, Faz-se de novo.

Percebe-se o que quer dizer de novo quando se olha para um bebé como o Augusto a repetir a mesma brincadeira repetidamente. Há sempre qualquer coisa, por ínfima que seja que, vista correctamente, faz tudo parecer novo. De novo.

De volta à música. E é por isto que a improvisação pode acontecer na milésima repetição da mesma frase, sempre mais fluente; sempre mais expressiva.

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