quarta-feira, 13 de abril de 2011

XII Steve Nachmanovitch - Free Play e Ben Zander (TED.com)

Estou a ler um livro, pela sei lá quantésima vez. Free Play, de Steve Nachmanovitch. Logo na introdução, fala da capacidade de improvisação de compositores como Beethoven ou Bach, e de como a especialização, tão em voga a partir da revolução industrial, foi separando compositores e intérpretes até ao ponto em que uns não tocavam e outros não compunham.


O livro tem o subtítulo bastante sugestivo Improvisation in Life and Art. E fala de criatividade, e da experiência da criação artística, no sentido da perceção intuitiva do todo, mais do que da execução em si.

É interessante pensar nisto. Até que ponto se perde criatividade quando se perde o corpo no fazer?

Vamos ver um concerto qualquer de um compositor, desses famosos, de música erudita numa sala qualquer e, não poucas vezes, embora se note o virtuosismo na execução das notas, no vinco das calças ou no penteado, há sempre algo que falta. Falta intensidade. Falta gozo. Falta comunicação. Há truques de algibeira, muitas horas de prática, muita preocupação com os detalhes, mas… olhamos para a audiência e, não poucas vezes, as poucas pessoas atentas conseguem-no apenas pelo exercício trivial de encontrar defeitos na apresentação para depois poderem criticar.

Enfadonho. Faz-me sempre lembrar o Ben Zander no TED  http://www.ted.com/talks/benjamin_zander_on_music_and_passion.html, quando diz que a culpa de o público não prestar atenção é mais dos músicos que do público. É preciso coragem para o assumir!

Estou a falar disto mas não é por causa disto. Quer dizer, estou a falar disto porque se vê disto muitas vezes. É como se agora eu continuasse a falar disto e isto não chegasse nunca mais longe que isto. É disto que eu quero falar.

Disso mesmo. Isso.

E da forma como o desenvolvimento da tecnologia nos permite, por um lado, ter argumentos cada vez mais impressionantes do ponto de vista técnico, de como nos permite arranjos e efeitos cada vez mais impactuantes, mais aparentemente espetaculares, e de como, ao mesmo tempo, nos vai desimplicando do processo. Quer dizer, fazer é cada vez mais uma série de automatismos que desencadeamos quando carregamos num botão qualquer.
E isto é que é isso! Isto é, apesar de todo o efeito, o que é isto? Passado o barulho das luzes, o que é que ficou?
Fica-me uma pergunta: Será que a criatividade subsiste quando se separa constantemente o pensamento da acção?
Mudo para a fotografia e pergunto outra vez: Será que a criatividade subsiste quando se separa constantemente o pensamento da acção?

Claro que é bom termos um plano, claro que é impossível agir sem repetir padrões, sem repetir questões, sem nos expormos no que fazemos. Isso. À medida que avançamos no trabalho vamos percebendo mais, vamo-nos percebendo melhor, e escolhemos mais, e preparamos mais, e a resposta é cada vez mais nós.

Mas isto não quer dizer que se saia de casa a saber exatamente o que se vai ter quando se chegar. Quer dizer, a coisa não te de ser assim tão premeditada, tão mastigada, que o trabalho em si seja feito quase como quem espera um comboio que se atrasou.
Os mestres Zen traçavam círculos em busca de um gesto completo. É engraçado que achemos chata a simples ideia de o fazer. Não imaginamos o poder de concentração, física, mental e espiritual, necessárias para traçar um círculo que seja verdadeiramente um círculo. É que é muito fácil imaginar um círculo. E estamos habituados a pensar que, depois de imaginada a cena, já está tudo feito. E em certo sentido, até está. Mas fica sempre a faltar qualquer coisa. Em vez de a imaginação habitar o corpo e lhe dar sentido e pedir forma, é o corpo que vai habitando a imaginação, perdendo-se cada vez mais.

Isso faz-me pensar nisto: Sempre olhei a fotografia como o instrumento ideal porque nos dava um tempo quase absoluto para nos envolvermos e pensarmos criativamente, para podermos ver com tempo e atenção e desprendimento. Há uma frase do Minor White que resume esta minha posição: Spirit always stands still long enough for the photographer it has chosen. (li-a primeiramente no livro do Nachmanovitch). Sempre vi as coisas assim. Pensa-se através da lente e espera-se. Quer dizer, é uma espera que não é uma espera, é uma actividade interior, uma criação de sentido com o que está em volta. O raciocínio vai-se formando com as imagens, não no sentido de ir perfeitamente ao encontro do que pensáramos antes, mas sim no sentido de não se pensar nada antes, nada mais do que uma ou duas questões que nos despertem a curiosidade no olhar.

Essa curiosidade, aliada a essa questão ou duas é que nos constroem o raciocínio e completam o olhar. Usando a expressão do Ben Zander, One Buttock photographing.

2 comentários:

  1. estava a ler e a pensar «mas e então e o Zander?»

    ok, conheces! eu vi ele ao vivo na casa da música... uma "talk" de 1 hora e 1 concerto

    ele fala muito disso, se calhar até demais... mas é essa a batalha dele, devolver o sentido, a intenção à interpretação

    reduzir, eliminar mesmo, o pulsar interno, pulsar com a interpretação... ou pulsar a ... ou deixar a música pulsar em nós

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  2. engraçado é que essa consciência vai chegando a outras áreas do viver... os geeks chamam-lhe "being in the zone" ... algo que se persegue no dia a dia com vista a trabalhar (geralmente cenas de computadores) com prazer, na frequência certa, onde se ganha aquela constância de se aguentar ali no fio da navalha, ali onde se transforma a intenção em consequência

    eu costumo pensar que "being in the zone", na sua forma mais estrita, é remover por completo o obstáculo que somos nós mesmos... a intenção liga-se à consequência e simplesmente acontecem, em uníssono.. ou como uma coisa só

    a pessoa deixa de ser obstáculo para passar a ser simplesmente o meio físico onde a cena acontece, onde se produz um qualquer efeito mecânico, onde vibra uma qualquer energia seja ela a luz da fotografia ou a frequência de uma nota ou 30 linhas de código

    e não quero com isso dizer que a cena, o tal fornicanço entre a intenção e a consequência, aconteça só nesse plano físico... sim, sim, acontece noutros também! ... mas isso já são outras conversas, sobre o sujeito que é o meio, que está no meio, que por esse meio tem acesso aos outros planos onde a cena acontece (e não digo "onde está a acontecer" porque desconfio que são outros tempos e espaços ou mesmo para além deles)

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