Há algo que sempre me agradou profundamente na música coral,
o facto de termos que estar sempre atentos aos outros para chegar a um
resultado colectivo. Divido o tempo e a actividade criativa entre a música, que
é uma actividade colectiva, por um lado, e a escrita e a fotografia, onde a
decisão é sempre individual, por outro. Não digo nada, não posso dizer nada
contra a prática da fotografia nem da escrita como disciplinas de criatividade
e auto-conhecimento, porque me permitiram, ao longo do tempo, encontrar um
ritmo, um tempo e uma geometria de análise e de pensamento que me permitem
distanciar-me e olhar e ver. Essa dinâmica de trabalhar a partir do próprio
pulso, do próprio olhar; esse despir que permite que o ritmo sejamos nós, é
algo que sempre me fascinou. Bergson fala na intuição do filósofo, tem um texto
interessantíssimo em La Pensée et le Mouvant que fala disso mesmo. Diz-nos que
o filósofo, apesar de toda a complicação que a sua escrita possa atingir, é
levado por uma visão, por uma intuição do funcionamento geral das coisas, a
criar toda a sua obra; o seu trabalho, creio que podemos chamá-lo de criativo,
também, é o de trazer ao mundo essa pulsação do ver e do perceber intuitivos. A
intuição filosófica. Curiosamente, a descrição de algumas disciplinas orientais
dos processos de iluminação é muito próxima desta intuição, desta união com o
todo. Essa intuição, creio, está na origem de todo o acto criativo, é uma
ligação que atingimos connosco através do “exterior”, ou, quiçá, a prova de que
essa divisão é mais arbitrária do que aparenta.
Quando chegamos à música coral, algo muda nisto tudo. Este momento,
esta intuição criativa é um gesto colectivo. Acontece na medida em que todos se
ouvem e se integram no som. E o mais interessante é que isto ocorre no máximo,
e não no mínimo, daquilo que cada um dá ao grupo: cantamos tanto mais e melhor
quanto mais e melhor ouvirmos.
A Sara uma vez disse-me que eu parecia uma nota num acorde,
que nunca soava sozinho ou algo assim do género. Não tenho inteira certeza de
que isto tenha sido dito como elogio mas confesso que o sinto como tal. Ser um
acorde com qualquer coisa é uma experiência maravilhosa e deixa marcas, cria
humanidade.
Por ter passado um ano a fazer uma Pós-Graduação em
Fotografia, tive que me ausentar do Coro onde canto durante algum tempo. Na
semana passada pude, finalmente, voltar. A forma como fui recebido e como me
senti quando voltei faz-me pensar outra vez nessa história do acorde e na
possibilidade que temos todos de atingir um momento de intuição criativa
conjunto.
Falamos tanto na competitividade que é necessária para nos
tirar da crise… estes momentos fazem-me pensar que é a competitividade que nos
trouxe até ela. É só quando nos ouvimos num acorde que percebemos a dimensão da
nossa voz como indivíduos.
Obrigado a todos os membros do Coro Lisboa Cantat e ao
Maestro Jorge Alves por me lembrarem tantas vezes disto!
Este sábado, vai cantar-se outra vez o Acordai, música de
Fernando Lopes Graça pra um poema de José Gomes Ferreira. Vai ser dirigido pelo
Maestro José Robert, outra pessoa a quem devo tanto nesta aprendizagem de ouvir
o outro.
A música diz-nos sempre qualquer coisa. A música que canta a
poesia, ainda mais. Lopes Graça não terá tido a melhor das vidas, naquilo que
consideramos uma vida boa. As suas convicções foram postas à prova repetidas
vezes. Em vez de se acalmarem, foram ficando mais fortes. Se há algo que sempre
me apaixonou na sua música, é a sua dedicação, o seu respeito pela língua,
pelos textos que musica. A música fala-nos ainda mais dos textos cantados; tem
por estes o respeito que estes têm pela cultura que transmitem.
Faz-nos falta, estes respeito. Faz-nos falta ouvir mais do
que querer falar, e perceber que a nossa voz ecoa a voz dos outros, e que esse
eco não abafa, mas amplifica.
O Zé Robert fazia menção, num ensaio, ao facto de os
franceses chamarem repetição aos ensaios. Oiçamos outra vez, então. Oiçamos melhor.
Acordemos.
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