sexta-feira, 12 de outubro de 2012

XIX


Há algo que sempre me agradou profundamente na música coral, o facto de termos que estar sempre atentos aos outros para chegar a um resultado colectivo. Divido o tempo e a actividade criativa entre a música, que é uma actividade colectiva, por um lado, e a escrita e a fotografia, onde a decisão é sempre individual, por outro. Não digo nada, não posso dizer nada contra a prática da fotografia nem da escrita como disciplinas de criatividade e auto-conhecimento, porque me permitiram, ao longo do tempo, encontrar um ritmo, um tempo e uma geometria de análise e de pensamento que me permitem distanciar-me e olhar e ver. Essa dinâmica de trabalhar a partir do próprio pulso, do próprio olhar; esse despir que permite que o ritmo sejamos nós, é algo que sempre me fascinou. Bergson fala na intuição do filósofo, tem um texto interessantíssimo em La Pensée et le Mouvant que fala disso mesmo. Diz-nos que o filósofo, apesar de toda a complicação que a sua escrita possa atingir, é levado por uma visão, por uma intuição do funcionamento geral das coisas, a criar toda a sua obra; o seu trabalho, creio que podemos chamá-lo de criativo, também, é o de trazer ao mundo essa pulsação do ver e do perceber intuitivos. A intuição filosófica. Curiosamente, a descrição de algumas disciplinas orientais dos processos de iluminação é muito próxima desta intuição, desta união com o todo. Essa intuição, creio, está na origem de todo o acto criativo, é uma ligação que atingimos connosco através do “exterior”, ou, quiçá, a prova de que essa divisão é mais arbitrária do que aparenta.
Quando chegamos à música coral, algo muda nisto tudo. Este momento, esta intuição criativa é um gesto colectivo. Acontece na medida em que todos se ouvem e se integram no som. E o mais interessante é que isto ocorre no máximo, e não no mínimo, daquilo que cada um dá ao grupo: cantamos tanto mais e melhor quanto mais e melhor ouvirmos.
A Sara uma vez disse-me que eu parecia uma nota num acorde, que nunca soava sozinho ou algo assim do género. Não tenho inteira certeza de que isto tenha sido dito como elogio mas confesso que o sinto como tal. Ser um acorde com qualquer coisa é uma experiência maravilhosa e deixa marcas, cria humanidade.
Por ter passado um ano a fazer uma Pós-Graduação em Fotografia, tive que me ausentar do Coro onde canto durante algum tempo. Na semana passada pude, finalmente, voltar. A forma como fui recebido e como me senti quando voltei faz-me pensar outra vez nessa história do acorde e na possibilidade que temos todos de atingir um momento de intuição criativa conjunto.
Falamos tanto na competitividade que é necessária para nos tirar da crise… estes momentos fazem-me pensar que é a competitividade que nos trouxe até ela. É só quando nos ouvimos num acorde que percebemos a dimensão da nossa voz como indivíduos.
Obrigado a todos os membros do Coro Lisboa Cantat e ao Maestro Jorge Alves por me lembrarem tantas vezes disto!

Este sábado, vai cantar-se outra vez o Acordai, música de Fernando Lopes Graça pra um poema de José Gomes Ferreira. Vai ser dirigido pelo Maestro José Robert, outra pessoa a quem devo tanto nesta aprendizagem de ouvir o outro.
A música diz-nos sempre qualquer coisa. A música que canta a poesia, ainda mais. Lopes Graça não terá tido a melhor das vidas, naquilo que consideramos uma vida boa. As suas convicções foram postas à prova repetidas vezes. Em vez de se acalmarem, foram ficando mais fortes. Se há algo que sempre me apaixonou na sua música, é a sua dedicação, o seu respeito pela língua, pelos textos que musica. A música fala-nos ainda mais dos textos cantados; tem por estes o respeito que estes têm pela cultura que transmitem.
Faz-nos falta, estes respeito. Faz-nos falta ouvir mais do que querer falar, e perceber que a nossa voz ecoa a voz dos outros, e que esse eco não abafa, mas amplifica.
O Zé Robert fazia menção, num ensaio, ao facto de os franceses chamarem repetição aos ensaios. Oiçamos outra vez, então. Oiçamos melhor. Acordemos.

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