Repetimos muitas palavras mas nem sempre nos reflectimos nelas. O hábito, as expressões a brilhar cada vez menos, a mostrar cada vez menos de si mesmas. Tornam-se rudes, como os gestos irreflectidos, como quando não estamos connosco no mundo.
E às tantas, já só projectam ausência nos músculos que nos afastam de as sentir...
Alegria...
Fiquei a pensar nisto no outro dia, ao ouvir, mais uma vez (é uma eterna novidade), a nona sinfonia de Beethoven. Fiquei a pensar na palavra: Freude, e em como ela é diferente da nossa palavra Alegria.
Claro que isto não interessa nada porque o homem era surdo. Quer dizer, se o gajo nem sequer ouvia o som, para que é que se dava ao trabalho de escrever?
Isto é tão interessante! O Mark Steel, que faz umas biografias deliciosas, diz que Beethoven era o Johnny Cash, o Hendrix ou o Marley do seu tempo; não dava para ouvir baixinho sem incomodar ninguém. Não, era para ouvir aos berros!
E realmente, ... Freude! Dá vontade de gritar.
Imagino o som a gritar-lhe as vibrações na espinha e aquela sensação electrizante, aquele gozo incontornável...
Extase. O mesmo que ainda se sente ao ouvir o que ele sentiu. No outro dia estava a ver um livro que tinha uma amostra de partituras de Beethoven. A caligrafia é toda visceral, parece que o corpo se contorcia para esculpir o som nas sensações. Aquela marcha triunfal de quem se sente feliz, o peito aberto, o gozo... Será que lá chegou, mesmo? Será aquele o resultado de toda uma procura da vibração? Terá chegado lá?
Gosto de pensar que sim, que, no fim de todo uma batalha com as suas próprias limitações, o gozo, a liberdade de quem não tem tensões e se sente ligado a tudo irrompeu, tão radiante como música nos dá a ouvir.
Gozo. A nossa palavra para aquilo não pode ser alegria. Até um surdo o saberia! Basta dizer as palavras e sentir: Alegria... parece até que nem tem espinha... parece aquela coisa comezinha de Ai que bom, hoje não está quente está frio. Não, isto é gozo, mesmo. Ouça-se a dizê-lo: Gozo. Joy. Freude. É um gozo, sentir espasmos de felicidade, sentirmo-nos unos com tudo e andar como se transportássemos o universo. Sim, há amor e orgulho suficientes nisso para se andar de cabeça erguida e peito cheio, e há aquela marcha extática de quem se sabe construtor do mundo.
Gozo.
E o homem nem ouvia...
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