quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Fotografia Portugesa - Japan Drug, António Júlio Duarte



António Júlio Duarte, Japan Drug
Pierre Von Kleist Editions, 2014

"It was 1997 and the new millennium was imminent, one could feel the tense anticipation about what was to come next.
I was alone in Japan, a place I had never been before. During the day I would go out looking for my own sense of the place, photographing, exploring notions of center, a place of convergence, as the world expanded before me in its uncertain course. 
Many years have passed and I felt a need to go back to these images.The millennium is long gone but the vertigo of uncertainty is yet to disappear." 


António Júlio Duarte, Japan Drug


Japan Drug começa por ser uma revisitação de um portefólio de imagens de 1997 que deixou marcas. Fora apresentado em 1999 em Peepshow e agora, em resposta a um convite para uma exposição retrospetiva, António Júlio Duarte decidiu voltar a editar o trabalho, debruçar-se uma vez mais sobre a relação com as imagens e levar-nos a mergulhar numa atmosfera de profundo estranhamento.


Todas as imagens retiradas do site da editora



Japan Drug parece desfazer a relação referencial com o mundano na sua procura de sentido do espaço e deixar surgir apenas essa aura de estranhamento, essa vertigem da incerteza. Faz-nos procurar, também. A ideia do observador, daquele que está de fora e é isento e pode, por isso, apontar e nomear, desaparece. Fica um relato surdo do ruído do mundo na forma como as imagens dialogam.

António Júlio Duarte diz-nos, numa entrevista a propósito de um outro livro, que precisa de estar relativamente deprimido para estar naquilo a que Daido Moriyama chama photo mode. Japan Drug é uma experiência de imersão num universo de sensibilidade visual à estranheza que é este ruído para quem se move em silêncio, para o animal que se move num terreno onde o instinto já não conta mas também falhou a domesticação.

Aldous Huxley fala, em Céu e Inferno, nas formas que o homem tem de ultrapassar os limites da consciência e assim alargar a sua perceção da realidade. Diz-nos que a experiência é quimicamente condicionada, seja pela alimentação ou pelo jejum, pela ingestão de drogas, pelo trabalho com a respiração ou alterações de humor e que pode levar a estados alterados de consciência em que a convenção afrouxa um pouco a ditadura sobre a perceção.





A representação convencional do mundo guarda-nos num código coletivo de espelhamentos; numa bolha de ações e reações que sabemos reconhecer e às quais sabemos responder, que nos guardam do imprevisto mas também da novidade e nos reduzem a consciência a um estribilho contínuo, um pouco como o frigorífico que nos guarda a comida em condições por mais tempo e que produz um ruído que, o mais das vezes, só notamos quando para. A própria ação do pensamento frigorífico convencional produz o barulho que nos mantém nesse ciclo como um mantra. Ouvimo-lo um pouco por todo o lado e, olhando em volta, vemos a sua mensagem projetada na própria representação com que nos alimenta.

Talvez o estado relativamente deprimido seja uma forma de acesso a um estado para lá desse espelhamento da representação, qual Alice caída num território sombrio, e a quebra do mantra torne as imagens da representação tão úteis como um frigorífico avariado. Talvez esteja aqui a falha na domesticação que tornaria o terreno confortável.




No fim, parece que o livro nos mostra as imagens desse pensamento frigorífico, os nossos símbolos cauda de pavão como um desperdício, uma ressaca, como se o frigorífico estivesse avariado e produzisse apenas o ruído, o tal mantra da sua representação e não alimentasse nada.

Torna-se, então, mais do que o relato surdo do mundo, no relato do vício desse ruído, da necessidade de o ouvir que o transforma num mantra, numa droga. A depressão do photo mode é um mergulho numa forma de isolamento. É uma imersão, certo, mas num isolamento do efeito viciante do ruído. As reações às imagens perdem o lado automático que conseguimos espelhar e consumir e tornam-se um convite aberto à interpretação. Os dípticos abrem como que um jogo de espelhos entre si e somos convidados a dialogar, já não com o espelho, mas com o próprio jogo, a partir do tal isolamento. O mantra dá lugar a um koan.


Em Japan Drug, é a própria incerteza que nos permite estar, é a sensibilidade do isolamento que nos permite abrir, é a surdez em relação ao mantra que nos permite ouvir o silêncio quando o frigorífico para.



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