terça-feira, 23 de junho de 2015

Penso nos Cravos

Penso nos cravos.
Penso que são cravos,
Não sei bem se se pode chamar cravos depois de arrancados da raiz que os alimenta.
O que é um homem arrancado da raiz?
Penso se calhar são escravos, que metemos nas espingardas, ainda, em dias de multidões.
Somos sempre nós.
Nas espingardas, como na voz, sempre a cantar de cor, sempre a apontar fantasmas.
Penso que os cravos só não murcham na fotografia do anúncio da repetição.
E o que seria se os plantássemos?
O que seria se plantássemos os cravos na terra? Como seríamos, agora?
1%. O que seria a cultura se tivéssemos plantado os cravos?
Apenas um porcento, que fosse? Como estaríamos agora?
Como olharíamos uns para os outros?
Como saudaríamos o próximo, sabendo-o plantado na mesma terra, com as mesmas mãos?
Mas isto é como no cinema. Pagamos bilhete e entramos
Comovemo-nos, sonhamos, pensamos que seríamos nós, se apenas…
E no fim saímos para a mesma forma outra de onde entrámos.
Acordai, homens que dormis,
Mas prefiro homens despertos dormindo
A uma multidão acordada que se repete nas espingardas gastas,
Nas imagens dos cravos nos cartazes,
Na forma como os mesmos punhos erguidos que clamam vitória
Carimbam as formas de lhe dizer não.

Penso que a crise da água é o problema dos cravos na mão.
Gastarmos tanta água para gritar revolução
Arrancarmos anos e anos de acção às mãos ocupadas
Deixando no sangue uma espécie de rega automática

Aceitar, no fim, que nos mandem poupar pelo tempo que nunca gastámos,
Que os cravos estão murchos, porque o suor de os segurar na praça
Não rega os sonhos que nos fazem levantá-lo,
É o mesmo suor podre da mão que não larga o comando da televisão


E mesmo pensando,
E mesmo querendo regar os cravos caídos,
E mesmo procurando ainda a terra e querendo deitar-lhes raízes
Das mãos meio dormentes, não saímos do engodo, só temos espingardas.
Temos alergias nos calos do suor pegajoso do contacto com o metal 
E nem pólvora temos,
E os cravos arrancados são tão escravos como nós
Enquanto achamos que os gritos repetidos são mais
Que música para os ouvidos de quem os planta

Na sala da programação.

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