sábado, 9 de maio de 2015

Ao Rodrigo Miragaia


Porque a poesia nunca tratou do belo. Isso é conversa de esteticista. A poesia sempre viveu do subúrbio. É sempre uma cena da porta a ranger, do ruído das obras no silêncio da observação, dos canhões de fumo, ao longe, na pele menos perfeita da rapariga a pé pelo caminho atrás da fábrica.
Olhamos para ela ao longe e nunca se sabe bem se está a dançar, se a bambolear, se vem inebriada da existência incrível do ritmo das coisas, se intoxicada pela merda do almoço por 3 euros e 90 no refeitório da empresa que lhe faz poupar para as edições baratas dos clássicos russos (da editora do patrão).

O que trata do belo é o patrão, que ele é que publica os autores russos que alimentam a rapariga com aquela ilusão da dança. Quando a rapariga compra os livros que os alimentam, claro, está a reconhecê-lo, pensa o patrão.

- Que bonitos estes autores, Senhor Doutor, diz-lhe ela um dia, hora de almoço, no escritório.
- Bonito é o som das suas palavras quando os lê, Matilde. Responde-lhe este, atenciosamente, afagando-lhe o rosto. E o pescoço.

Já a possui. Sabe-o, enquanto cumpre o ritual de sedução que começou no dia da entrevista (Tivemos sorte em encontra-la, Menina. É tão difícil hoje em dia encontrar gente que percebe quão difícil é para um patrão, sustentar um empregado!).

Matilde sorri. Parece sorrir. Como no caminho por onde vem, parece dançar e sorrir. E ali também. E o patrão também o vê, e os canhões de fumo, e as obras a erguer mais ruído no silêncio da vegetação.
Bonito, Bonito, é ter mais tostões no porquito, pensa.


Rodrigo Miragaia


Porque a poesia nunca tratou do belo. “Quem limpa com perfeição/ tem vileda sempre à mão”. Porque isto é sempre uma questão de asseio. A poesia é saber rimar a apresentação com o desempenho, mesmo tendo que liberalizar o verso.E é por isto que a Dona Otília não canta “Para lidar com insurreição/Desterritorialização!”

- Prefiro a canção da novela, diz-nos. E depois, eu tenho lá tempo para essas coisas! A minha Matilde chega tarde a casa do trabalho, coitadita, e vem cansada, e sobretudo agora, que está grávida. Mas lá o Senhor Doutor, o Patrão dela, ele é um bom homem! Deixa-a vir trabalhar menos para não se cansar e só lhe paga menos 40% à hora!E ainda insiste que ela venha almoçar! Tem muito a agradecer-lhe, agora que tem de criar o filho sozinha! Se ela perde aquele emprego, aí é que se vai ver o que é a beleza!





Porque a poesia nunca tratou do belo.

“Quando um gajo está em baixo, até os cães lhe vêm mijar na perna. Lindas Palavras!”
Victor Bigodes, 1999



Rodrigo Miragaia



A poesia trata é da sua respiração e é só isso que nos salva, não é, Rodrigo Miragaia? Haver ritmo. Haver tempo. Haver escamas de peixe para ninguém dizer que a fotografia é uma cena para fixar o tempo Não! Isto foi feito para respirar! E isso é que é o ritmo e isso é que é o tempo e isso é que é as palavras e as imagens e o facto de a gente navegar entre as escamas e sentir o ar passar. A escolha é nossa, entre o dançar e o bambolear.
É esta a poesia das imagens: em cada passo, andar aqui oscila existencialmente entre o humano e o filho de puta.
Como não fazer o percurso a dançar?

Há espaços brancos entre os ramos. E a gente sabe que o espaço entre os fotogramas não separam, são um vento que ali passa e faz repetir o som que faz existir o poema nas imagens. 



Rodrigo Miragaia






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